Thursday, March 23, 2006

Da terra vermelha nas cataratas

O alcatrão é pintalgado a vermelho. Da terra, que se cola aos sapatos. E que aí permanece por muito tempo, como procurando garantir que a impressão do lugar fica suficientemente impregnada na memória. Puerto Iguazú vive meio adormecido confiado nas cataratas. Respira por pulmões próprios à conta de uma falha geológica, placa basáltica abruptamente terminada em abismo de 70 metros na confluência dos rios Iguaçú e Paraná.
Mais bonita é a lenda guarani: o guerreiro Caroba desafiou o deus da floresta, escapando, rio abaixo, com Naipur, jovem por quem a personagem divina se havia enamorado, até ver a sua fuga abruptamente interrompida pela ira transcendente que fez o rio desaparecer à frente da canoa dos amantes – Naipur transformou-se em pedra e Caroba em árvore, condenado a olhar a sua amada por toda a eternidade.
Puerto Iguazú é também fronteira. Tripla fronteira. De um lado do Paraná: Paraguai. Do outro: Argentina. A norte do Iguaçú: Brasil. No promontório, onde as águas barrentas dos dois rios se encontram, um obelisco de três metros de altura pintado de branco e azul-celeste responde, com bandeira ondeante incluído, às outras duas construções humanas de em frente, ufanas em outras cores (verde e amarelo; azul, branco e vermelho).
Às divisões naturais, os homens respondem com símbolos de posse sem compreender a farsa: terra e água são donas de si e os homens brinquedos com que gostam de jogar. O espanhol Alvaro Nuñez Cabeza de Vaca também pensou, em 1541, que, por ser o primeiro europeu a olhar as cataratas do Iguaçú, as descobrira. Nem as lendas guaranis garantiram aos indígenas o direito a figurar nos registos do passado. Aos povos de tradição oral sempre lhes negaram protagonismo na história escrita. Puro menosprezo eurocêntrico e elitista.
À brasileira Foz do Iguaçú e à paraguaia Ciudad del Este, Puerto Iguazú pouco se assemelha. A geografia as juntou, o clima (entre 25 graus no Inverno e 45 no Verão, mais a humidade da selva subtropical) deu-lhes dolência igual. No entanto, a geopolítica contribuiu para o seu crescimento diferenciado. A cidade argentina, pequena e agradável, sem os normais atentados de zona turística (a carcaça de um hotel que nunca chegou a ser mais que placas de cimento a céu aberto serve de excepção), mantém os traços característicos de povoação perdida, longe dos centros de decisão. Bem diferente da obscura, triste e vulgar Foz do Iguaçú, fruto da explosão demográfica (de 35 mil habitantes passou a 190 mil) originada pela construção da bairragem de Itaipú (hino à corrupção); ou da armadilha para turistas chamada Ciudad del Este.
Antes denominada Puerto Presidente Stroessner (ditador paraguaio de 1954 até 1989), Ciudad del Este espera o turista/rato com a armadilha de “15 mil lojas amontoadas em 20 quarteirões”, tal como a caracterizou o “Wall Street Journal”. Contrabando, corrupção próspera, violência endémica, grupos mafiosos. Cidade à parte com mundo próprio. Para o governo paraguaio, um mundo onde intentar mudanças é meter mão em ninho de vespas. Asiáticos (sobretudo chineses) e árabes dominam como reis e senhores num território bem ao jeito de filme de cowboys: sem lei.
Fala-se: em Ciudad del Este está uma das principais fontes de rendimento do movimento islâmico Hezzbollah, através das contribuições dos imigrantes libaneses.
Nas ruas atapetadas de terra vermelha de Puerto Iguazú não há comerciantes impingindo mercadoria barata, nem turistas caminhando amontoados pelos passeios. Toma-se uma cerveja na esplanada de um bar aberto 24 horas por dia. Mesmo em pleno Inverno. Especialmente, em pleno Inverno, quando o calor e a humidade amainam um pouco e permitem aos pulmões respirar tranquilamente, enquanto os mosquitos hibernam até aos banquetes de Verão.
A 1600 quilómetros de Buenos Aires, novas galáxias se perfilam. Se de pátrias falamos, muito tem a cabeça que imaginar para deduzir a verdade: estamos no mesmo país cuja capital cosmopolita se engrandece da sua tradição europeia. E de sempre ter vivido no primeiro mundo. As lutas entre a elite da cosmopolita Buenos Aires e a oligarquia rural, garantiram parte da história trágica da Argentina. Hoje, “porteños” (habitantes de Buenos Aires) e “provincianos” continuam a mirar-se depreciativamente. Apenas se juntando no desdém pelo estrangeiro, principalmente em relação aos outros latino-americanos. Conta a anedota, os argentinos usam a altura do seu ego para se suicidarem.
“Sempre se acreditou que a Argentina estava num sítio distinto daquele que lhe havia adjudicado a geografia, o acaso ou a história. (...) Já em 1810 vivíamos obcecados com a grandeza. O que agora nos obceca é o medo a precipitarmo-nos na pequenez. Para evitar esse derrube, repetimos uma e outra vez: Somos grandes, estamos entre os grandes. A única pena é que os grandes não se dão conta do facto”.
Palavras tomadas de empréstimo a Tomás Eloy Martínez, autor de um livro de ensaios sobre a essência de ser argentino, exactamente intitulado “El Sueño Argentino”, para que a coisa não seja interpretada como exagerado despeito de estrangeiro.
Tendo tal em conta, a experiência de Puerto Iguazú assemelha-se a aproximação iniciática ao coração de outra Argentina. A dessas águas barrentas correndo pelas cicatrizes da terra, num país onde a paisagem tem fama (e proveito) de ser regalo divino. Quando Deus criou a Argentina à imagem de um Éden terrestre, colocou nela os argentinos para contrabalançar. Não fosse crescer a inveja e rebentassem guerras.

Monday, March 20, 2006

De Ushuaia a Los Angeles

Em 1984, uma vintena de músicos, técnicos e uma fotógrafa – com câmaras de vídeo, um autocarro, um estúdio móvel de som e um gerador para levar luz até onde não a havia – empreenderam uma das viagens mais importantes para a história da música argentina. A maior parte dos intervenientes vinha do rock e eram liderados por dois homens, León Gieco, rocker com preocupações sociais, e Gustavo Santaolalla, compositor, músico, produtor e apaixonado pelo charango (uma espécie de cavaquinho andino).
O mesmo Santaolalla, diga-se, que se transformaria depois no mais importante produtor musical do rock latino-americano, que se instalou em Los Angeles, onde montou o seu muito solicitado estúdio (La Casa) e onde acabou por se meter nas músicas para filmes com “Amores Perros” (“Love’s a Bitch”). Compôs outras (“21 Grams”, “Motorcycle Diaries”) e este ano ganhou um Óscar com a banda sonora de “Brokeback Mountain”.
A viagem de há mais de 20 anos foi ao mesmo tempo geográfica e etno-musiológica e que a tenha feito gente do rock mostra que por trás do projecto havia, além do interesse intelectual, muita paixão e desejo de registar a riqueza cultural de um país que acabava de emergir de uma ditadura brutal que deixara um rasto de 30 mil desaparecidos.
A jornada a empreender não foi até ao fim do mundo, mas teve o condão de mostrar muitos mundos. Do extremo mais austral do país, no clima antárctico de Ushuaia, até às securas de La Quiaca, terra pobre, dura e quente junto à fronteira com a Bolívia, foram quase 4500 quilómetros de aventura que resultaram, na altura, na edição de apenas um disco por problemas com o selo discográfico.
O projecto era demasiado adiantado para o tempo, Gieco e Santaolalla recuperavam as raízes argentinas quando o país se abria ao exterior para beber do rock anglo-saxónico e a lógica do mercado era contrária à edição de discos muito extensos.
“De Ushuaia a La Quiaca” seria recuperado 15 anos depois pelo diário “Página/12” que se lançou na edição do material em quatro CD com informação e fotografias, demonstrando que as gravações ao invés de empoadas pelo tempo, ganhavam brilho de tesouro e antecipavam em muito tempo o gosto que o mercado viria a ter anos mais tarde pela world music.
Gravando com a chilena Isabel Parra nas margens do rio Pipo na paisagem nevada da Terra do Fogo (Sul) ou com 1500 crianças e 40 professoras no anfiteatro El Cadillal em Tucumán (Norte), “De Ushuaia a La Quiaca” é uma celebração da riqueza musical de um país que é muito mais do que o cliché do tango.
As Zambas, chacareras, vidalas, chamames, corridos, cuartetos, bagualas, cuecas, tonadas, o som das quenas (flautas andinas), somadas ao tango e às milongas do rio de La Plata mostram que a geografia sonora argentina é tão díspar como a física, reflectindo a influência do clima, a importância da história e do povoamento do país.
No noroeste seco e desértico, terra dura, mantém-se a predominância indígena; no ambiente quase selvático do nordeste, onde o clima é húmido e a terra é rica, cruzam-se as influências dos imigrantes agricultores da Europa (ucranianos, polacos, alemães, etc.); na província de Córdoba, a cultura, a forma de falar e a música parecem vir de uma costela mais espanhola; na Patagónia, com a sua paisagem de nada a perder de vista, pouco populosa e fria, a relação com o Chile é mais próxima; Buenos Aires é um mundo aparte, mais demarcado pela influência italiana e por ser uma cidade-porto, berço de uma cultura que tem língua própria (o lunfardo) e cultura que se estende até ao Uruguai e é denominada como rio-platense.
E por aí fora, mostrando que o mundo conhecido é feito de outras camadas de mundos por trás e muitas vezes as identificações simples não são mais do que sínteses simplistas que pretendem ilustrar e apenas obscurecem.
León Gieco foi-se estabelecendo ao longo destes anos como um dos músicos mais activistas da Argentina, participando em inúmeros projectos na defesa dos direitos humanos e continuando a gravar discos para gáudio de uma legião enorme de fãs que extravasam as fronteiras argentinas e se estendem pelo continente americano.
Santaolalla zarpou para Los Angeles em busca de melhores condições para exercer o seu trabalho, assinando alguns dos grandes discos do rock latino-americano dos últimos anos (dos mexicanos Café Tacuba e Molotov, aos argentinos Arbol e Bersuit Vergarabat, passando pelos colombianos Aterciopelados, para falar apenas de alguns). A seu lado continua a ter Anibal Kerpel, músico e engenheiro de som que também participou na aventura “De Ushuaia a La Quiaca”.
Tanto Gieco como Santaolalla procuraram manter ao longo de todos estes anos a ligação com a música popular como base essencial para construir um rock autêntico que não seja cópia do que se vai produzindo nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. Os argentinos não tiveram a revolução do tropicalismo como os brasileiros, mas “De Ushuaia a La Quiaca” foi uma espécie de pequena revolta contra o estabelecido.
Enquanto escrevo estou a ouvir “Ronroco”, o disco que Santaolalla editou em nome próprio na Nonesuch Records em 1998 – na Amazon pode ser adquirido facilmente se tal pretender. Completamente instrumental, com o charango (o ronroco é um charango mais grave) tocado pelo músico/compositor/produtor a dominar as 12 faixas do CD e o acompanhamento do sempre presente Anibal Kerpel – Santaolalla agradeceu-lhe no discurso de aceitação do Oscar de “Brokeback Mountain” –, “Ronroco” é uma viagem nostálgico-intemporal por um mundo que parece real e irreal ao mesmo tempo, vivo e parado no tempo. Um dos temas chama-se precisamente “De Ushuaia a La Quiaca”.

Monday, March 13, 2006

Pequenos poemas sobre energia

O lago, as árvores, a cidade nova, a central nuclear, em tudo se respira um ar bucólico que puxa ao haiku, esse pequeno exercício poético japonês, delicado, simples e breve, a que nem falta o chilreio dos pássaros:

A central emerge,
como desajeitada baleia,
do mar de árvores.

A central nuclear de Igualina, 120 quilómetros a norte de Vilnius, na Lituânia, parece incrustada na paisagem que a rodeia. Era um princípio do mundo quando foi imaginada no início dos anos 70 e um pesadelo de apocalipse quando a construção do segundo reactor foi suspensa e o terceiro reactor não chegou a sair do papel em 1986, ao explodir a sua irmã gémea Chernobyl e transformar-se num caixão nuclear soviético.
O acidente de Chernobyl, ao que parece, surgiu de uma combinação de erros humanos imprevisíveis e em cadeia que pôs em causa as rotinas de segurança da central nuclear. Num país burocrático e controlador como a União Soviética, os mecanismos de controlo não funcionaram e a liberdade humana de errar germinou cogumelos nucleares. Dessa cadeia de erros, se aproveitou o fantasma para assustar – os municípios portugueses de gestão comunista, numa clara contradição com o exemplo de Moscovo e sem qualquer razão plausível a não ser a de propaganda, exibem há muitos anos placas orgulhosas com a inscrição ZLAN – Zona Livre de Armas Nucleares.
O medo marcante de Chernobyl deixou Igualina apenas com uma unidade de produção – canceladas as outras duas previstas –, mesmo assim, capaz de produzir a energia necessária pela Lituânia e ainda garantindo um excedente substancial para melhorar a balança comercial do país.
Só que desde que a Lituânia iniciou as negociações com vista à sua entrada na União Europeia (tal como veio a acontecer em Maio de 2004) que o tema de Igualina se mostrou como uma rocha pesada na construção do bom caminho para as negociações.
Os ambientalistas sempre a apelidaram de bomba-relógio nas barbas da Europa e zurziram no Governo lituano por resistir ao seu encerramento. O director da central, Viktor Shevaldin, garante a segurança absoluta da central, apelida a decisão de a encerrar até 2009 um disparate político e não uma sensata decisão científica, dá-lhe 30 anos de vida útil (até 2016) e com investimentos mais dez anos pelo menos (até 2026).
Só que nenhum argumento tem validez quando toca o medo a rebate. E uma central nuclear é fácil de pintar com as cores do temor generalizado. A morte que caminha silenciosa, os caixões de resíduos que se deixam para gerações e gerações vindouras, o perigo sem cheiro, nem sabor, invisível e impalpável, impossível de vencer.
O carvão que também aquece e o petróleo que também dá luz podem ser facilmente compreensíveis, mas a fusão do átomo! Com quantas palavras simples se pode explicar a enorme energia produzida pela junção de coisas que não se vêem, como os átomos?
E a União Europeia que é pátria de políticos e burocratas e se preocupa com relações públicas, lobbies e interesses nem quis prestar-se ao exercício de melhorar Igualina, de a vender como necessária, de demonstrar que sem ela, a Lituânia precisa de carvão e petróleo para se aquecer, alumiar, mover, carvão e petróleo que não causam tanto medo como a fusão do atómo, mas deixam, sem dúvida, rasto.
Quantos poemas bucólicos se poderiam escrever sobre minas de carvão ou poços de petróleo? Sobre essas marcas da Revolução Industrial escreveram Dickens e Zola páginas e páginas a inspirar uma necessária revolução, porém, ninguém se lembraria de lhes dedicar um poema simples, bucólico, um arremedo como este:

Negro o fumo
no rasto pesado dos pulmões
a gritar futuro.

Da UE, só ouviram os lituanos a ordem de fechar Igualina. E com a central condenada, Visaginas, a mais jovem cidade da Lituânia, 33800 habitantes, parece também ter os dias contados. Embora os seus habitantes queiram acreditar que não, por acreditarem em técnicas alternativas de sobrevivência – quantas cidades morreram a crer no mesmo milagre!
Iniciada com as casas dos primeiros engenheiros nucleares enviados para o local em 1975, recebeu o estatuto de assentamento do tipo urbano em 1977 com o nome de Sniechkus, baptismo que manteve até 1992, quando o Presidente da Lituânia autorizou as armas da cidade de Visaginas construída na margem do maior lago do país, Drukshai – do outro lado fica a Bielorrússia.
Ina Didziuzyte é jovem e fala orgulhosa “deste lugar diferente”, sem lutas, nem “night-clubs”, e acredita nos investimentos no turismo. Ramunas Cizauskas, especialista em turismo, cita o exemplo dos seis milhões de euros investidos para limpar a área do lago, fala na melhoria das infra-estruturas do estádio e nos courts de ténis, na marina, na praia fluvial de areia fina, nos hotéis. Ambos querem acreditar no que dizem.
Uma enorme área em torno de Chernobyl, tornada interdita ao homem por causa das radiações nucleares, está hoje, 20 anos depois, transformada em santuário da vida selvagem e há empresas na Ucrânia especializadas em turismo de aventura na zona proibida. Visaginas não teve nenhum desastre nuclear, apenas uma central gémea de Chernobyl condenada a fechar, o seu é um caso mais difícil para explorar. Em termos turísticos, quero dizer.

A energia inesgotável dos Caretos

Exemplo de um mundo a caminhar para o seu fim, os Caretos resistem a cumprir a sua condenação e todos os anos renovam os votos de se manterem vivos. E regressam sempre para despedir o Inverno e saudar a Primavera. Em Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, todos os anos é assim. Chegado o mês de Fevereiro, os homens envergam os trajes coloridos (elaborados com colchas franjadas de lã ou de linho, em teares caseiros), escondem a cabeça entre duas máscaras de lata, prendem uma enfiada de chocalhos à cintura e bandoleiras de campainhas e despendem toda a energia do mundo para assinalar a chegada do calor e dos dias maiores.
Normalmente, contam com os favores do Sol, magnânimo para quem louva o seu reino com tanto fervor. Religioso também, pois assim se marca, com os últimos estertores da folia, o início da Quaresma. Período de calma, reflexão e contenção do calendário religioso. A cansar no Carnaval para acalmar até à Páscoa.
Há quem vá buscar a origem da festa de Podence ao império romano e às festas Saturnais – celebrações em honra de Saturno, deus das sementeiras. Para acalmar a ira dos céus e garantir os favores de uma boa colheita, os homens libertavam quanta energia guardava o seu corpo. Na agricultura de subsistência, a diferença entre a vida e a morte, em muitos casos, cinge-se à dimensão da lavra. E a dupla máscara acentua a relação romana, ao lembrar uma das mais importantes divindades do império de Roma: Jano, deus do passado e do futuro e também do presente, senhor dos portões e entradas, da guerra e da paz e dono de todos os princípios.
O filho de Apolo, que um dia partilhou o trono com Saturno e conjuntamente civilizaram os habitantes da Itália, levando-os a tal prosperidade que ao reinado chamaram a Era de Ouro, é geralmente representado com duas caras por ser do passado e do futuro, e, principalmente, por ser símbolo do Sol, que aparece de manhã e se esconde à noite.
Passados à parte, em Podence, ainda hoje a agricultura é a principal actividade da população. Da terra se extraem cereais e castanhas, embora, nos últimos anos, tenha aumentado a produção de azeite. Nenhum milagre, tão-somente economias de escala. Apesar de reduzida a poucas centenas de almas, Podence parece ter força suficiente para manter a tradição e garantir a vida a esses bonecos coloridos, recheados de homens endemoninhados, armados de chocalhos e rédea solta para as tropelias. Mesmo se, explicam os mais velhos, o tempo tenha abrandado a folgança e as moças da terra já não acordem no dia seguinte com o corpo amassado e a contar as nódoas no corpo.
Nos anos 70, temeu-se pelo final da tradição. Os últimos anos da ditadura e o fenómeno da emigração aumentaram a pobreza e reduziram as gentes. Seria recuperada uma década mais tarde, quando alguma prosperidade fez respirar um pouco o interior que abraçou também o regresso de alguns dos que se tinham ido à aventura. Hoje por hoje, serão quatro dezenas os homens com fatos de Careto e energia para invadir a praça da aldeia no domingo e terça-feira de Entrudo. E o futuro está garantido, porque há muitos Facanitos (crianças com fatos idênticos aos mais velhos) prontos a tomar o testemunho. Os outros, aqueles que não podem envergar a fatiota, abrem as adegas para matar a sede aos folgazões.
A imunidade conferida pela máscara, permite aos caretos mergulhar nos excessos. Sendo as mulheres solteiras as vítimas preferenciais desses excessos. Encostam-se a elas e ensaiam estranhas danças com conteúdo quase erótico, agitando a cintura e batendo com os chocalhos nas ancas das vítimas que, para bem do corpo, acompanham a dança. E a dança tem nome simples e literal: chocalhar.
Entre o barulho festivo, a risota e o alarido lembram-se outros tempos, em que as mulheres se escondiam em casa pois os foliões iam muito para além dos chocalhos, lançando cinza e dejectos e fustigando as incautas com pele de coelho seca ou bexiga de porco fumada. Para não falar do banho de formigas, partida pesada e cruel com espécimens selvagens recolhidas nos campos durante meses. Também as casas eram invadidas e panela ao lume era panela condenada a ser o seu conteúdo vertido pelo chão, para mal da barriga dos infelizes.
Há quem sonhe em recuperar parte das brincadeiras perdidas, mesmo as mais ousadas, pois teme-se que de tanto aligeirar a tradição se transforme em mera ilustração superficial para turista ver. Ao Careto mau, diabo à solta pelas ruas, Podence quere ver vivo em cada Fevereiro, mesmo que à conta disso não possam dormir descansadas as moçoilas da aldeia.
Porém, com a internacionalização dos últimos anos, tal parece impossível. Realmente, desde as jornadas de Cultura Popular organizadas pela Associação Académica de Coimbra em 1985, importantes para o reavivar da tradição, até aos dias de hoje, os Caretos transmontanos percorreram um lento caminho de divulgação que os levou de Norte a Sul do país, a figurar na capa de um CD da Brigada Victor Jara e até a ultrapassar fronteiras para actuar na Disneyland Paris e no Carnaval de Nice.
Ou seja, tal como outras tradições mais bárbaras cuja aceitação pela Idade Moderna implicou a imposição de certas regras, os Caretos estão mais controlados, mais cientes de que a sua tropelia tem limites até para bem da continuação viva desta manifestação cultural única.
Adaptado ou não a tempos de mais brandos costumes, o Carnaval de Podence mantém o clima fantástico de antes. Sedutores e misteriosos, os Caretos guardam a magia dos tempos em que as histórias junto à lareira franqueavam a entrada em mundos de sonho. A eles tudo se permite; o anonimato dá-lhes prerrogativas; dá-lhes poder. Por dois dias no ano, os homens são crianças e quem mais brinca mais poder tem.