Monday, March 13, 2006

A energia inesgotável dos Caretos

Exemplo de um mundo a caminhar para o seu fim, os Caretos resistem a cumprir a sua condenação e todos os anos renovam os votos de se manterem vivos. E regressam sempre para despedir o Inverno e saudar a Primavera. Em Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, todos os anos é assim. Chegado o mês de Fevereiro, os homens envergam os trajes coloridos (elaborados com colchas franjadas de lã ou de linho, em teares caseiros), escondem a cabeça entre duas máscaras de lata, prendem uma enfiada de chocalhos à cintura e bandoleiras de campainhas e despendem toda a energia do mundo para assinalar a chegada do calor e dos dias maiores.
Normalmente, contam com os favores do Sol, magnânimo para quem louva o seu reino com tanto fervor. Religioso também, pois assim se marca, com os últimos estertores da folia, o início da Quaresma. Período de calma, reflexão e contenção do calendário religioso. A cansar no Carnaval para acalmar até à Páscoa.
Há quem vá buscar a origem da festa de Podence ao império romano e às festas Saturnais – celebrações em honra de Saturno, deus das sementeiras. Para acalmar a ira dos céus e garantir os favores de uma boa colheita, os homens libertavam quanta energia guardava o seu corpo. Na agricultura de subsistência, a diferença entre a vida e a morte, em muitos casos, cinge-se à dimensão da lavra. E a dupla máscara acentua a relação romana, ao lembrar uma das mais importantes divindades do império de Roma: Jano, deus do passado e do futuro e também do presente, senhor dos portões e entradas, da guerra e da paz e dono de todos os princípios.
O filho de Apolo, que um dia partilhou o trono com Saturno e conjuntamente civilizaram os habitantes da Itália, levando-os a tal prosperidade que ao reinado chamaram a Era de Ouro, é geralmente representado com duas caras por ser do passado e do futuro, e, principalmente, por ser símbolo do Sol, que aparece de manhã e se esconde à noite.
Passados à parte, em Podence, ainda hoje a agricultura é a principal actividade da população. Da terra se extraem cereais e castanhas, embora, nos últimos anos, tenha aumentado a produção de azeite. Nenhum milagre, tão-somente economias de escala. Apesar de reduzida a poucas centenas de almas, Podence parece ter força suficiente para manter a tradição e garantir a vida a esses bonecos coloridos, recheados de homens endemoninhados, armados de chocalhos e rédea solta para as tropelias. Mesmo se, explicam os mais velhos, o tempo tenha abrandado a folgança e as moças da terra já não acordem no dia seguinte com o corpo amassado e a contar as nódoas no corpo.
Nos anos 70, temeu-se pelo final da tradição. Os últimos anos da ditadura e o fenómeno da emigração aumentaram a pobreza e reduziram as gentes. Seria recuperada uma década mais tarde, quando alguma prosperidade fez respirar um pouco o interior que abraçou também o regresso de alguns dos que se tinham ido à aventura. Hoje por hoje, serão quatro dezenas os homens com fatos de Careto e energia para invadir a praça da aldeia no domingo e terça-feira de Entrudo. E o futuro está garantido, porque há muitos Facanitos (crianças com fatos idênticos aos mais velhos) prontos a tomar o testemunho. Os outros, aqueles que não podem envergar a fatiota, abrem as adegas para matar a sede aos folgazões.
A imunidade conferida pela máscara, permite aos caretos mergulhar nos excessos. Sendo as mulheres solteiras as vítimas preferenciais desses excessos. Encostam-se a elas e ensaiam estranhas danças com conteúdo quase erótico, agitando a cintura e batendo com os chocalhos nas ancas das vítimas que, para bem do corpo, acompanham a dança. E a dança tem nome simples e literal: chocalhar.
Entre o barulho festivo, a risota e o alarido lembram-se outros tempos, em que as mulheres se escondiam em casa pois os foliões iam muito para além dos chocalhos, lançando cinza e dejectos e fustigando as incautas com pele de coelho seca ou bexiga de porco fumada. Para não falar do banho de formigas, partida pesada e cruel com espécimens selvagens recolhidas nos campos durante meses. Também as casas eram invadidas e panela ao lume era panela condenada a ser o seu conteúdo vertido pelo chão, para mal da barriga dos infelizes.
Há quem sonhe em recuperar parte das brincadeiras perdidas, mesmo as mais ousadas, pois teme-se que de tanto aligeirar a tradição se transforme em mera ilustração superficial para turista ver. Ao Careto mau, diabo à solta pelas ruas, Podence quere ver vivo em cada Fevereiro, mesmo que à conta disso não possam dormir descansadas as moçoilas da aldeia.
Porém, com a internacionalização dos últimos anos, tal parece impossível. Realmente, desde as jornadas de Cultura Popular organizadas pela Associação Académica de Coimbra em 1985, importantes para o reavivar da tradição, até aos dias de hoje, os Caretos transmontanos percorreram um lento caminho de divulgação que os levou de Norte a Sul do país, a figurar na capa de um CD da Brigada Victor Jara e até a ultrapassar fronteiras para actuar na Disneyland Paris e no Carnaval de Nice.
Ou seja, tal como outras tradições mais bárbaras cuja aceitação pela Idade Moderna implicou a imposição de certas regras, os Caretos estão mais controlados, mais cientes de que a sua tropelia tem limites até para bem da continuação viva desta manifestação cultural única.
Adaptado ou não a tempos de mais brandos costumes, o Carnaval de Podence mantém o clima fantástico de antes. Sedutores e misteriosos, os Caretos guardam a magia dos tempos em que as histórias junto à lareira franqueavam a entrada em mundos de sonho. A eles tudo se permite; o anonimato dá-lhes prerrogativas; dá-lhes poder. Por dois dias no ano, os homens são crianças e quem mais brinca mais poder tem.

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