Thursday, March 23, 2006

Da terra vermelha nas cataratas

O alcatrão é pintalgado a vermelho. Da terra, que se cola aos sapatos. E que aí permanece por muito tempo, como procurando garantir que a impressão do lugar fica suficientemente impregnada na memória. Puerto Iguazú vive meio adormecido confiado nas cataratas. Respira por pulmões próprios à conta de uma falha geológica, placa basáltica abruptamente terminada em abismo de 70 metros na confluência dos rios Iguaçú e Paraná.
Mais bonita é a lenda guarani: o guerreiro Caroba desafiou o deus da floresta, escapando, rio abaixo, com Naipur, jovem por quem a personagem divina se havia enamorado, até ver a sua fuga abruptamente interrompida pela ira transcendente que fez o rio desaparecer à frente da canoa dos amantes – Naipur transformou-se em pedra e Caroba em árvore, condenado a olhar a sua amada por toda a eternidade.
Puerto Iguazú é também fronteira. Tripla fronteira. De um lado do Paraná: Paraguai. Do outro: Argentina. A norte do Iguaçú: Brasil. No promontório, onde as águas barrentas dos dois rios se encontram, um obelisco de três metros de altura pintado de branco e azul-celeste responde, com bandeira ondeante incluído, às outras duas construções humanas de em frente, ufanas em outras cores (verde e amarelo; azul, branco e vermelho).
Às divisões naturais, os homens respondem com símbolos de posse sem compreender a farsa: terra e água são donas de si e os homens brinquedos com que gostam de jogar. O espanhol Alvaro Nuñez Cabeza de Vaca também pensou, em 1541, que, por ser o primeiro europeu a olhar as cataratas do Iguaçú, as descobrira. Nem as lendas guaranis garantiram aos indígenas o direito a figurar nos registos do passado. Aos povos de tradição oral sempre lhes negaram protagonismo na história escrita. Puro menosprezo eurocêntrico e elitista.
À brasileira Foz do Iguaçú e à paraguaia Ciudad del Este, Puerto Iguazú pouco se assemelha. A geografia as juntou, o clima (entre 25 graus no Inverno e 45 no Verão, mais a humidade da selva subtropical) deu-lhes dolência igual. No entanto, a geopolítica contribuiu para o seu crescimento diferenciado. A cidade argentina, pequena e agradável, sem os normais atentados de zona turística (a carcaça de um hotel que nunca chegou a ser mais que placas de cimento a céu aberto serve de excepção), mantém os traços característicos de povoação perdida, longe dos centros de decisão. Bem diferente da obscura, triste e vulgar Foz do Iguaçú, fruto da explosão demográfica (de 35 mil habitantes passou a 190 mil) originada pela construção da bairragem de Itaipú (hino à corrupção); ou da armadilha para turistas chamada Ciudad del Este.
Antes denominada Puerto Presidente Stroessner (ditador paraguaio de 1954 até 1989), Ciudad del Este espera o turista/rato com a armadilha de “15 mil lojas amontoadas em 20 quarteirões”, tal como a caracterizou o “Wall Street Journal”. Contrabando, corrupção próspera, violência endémica, grupos mafiosos. Cidade à parte com mundo próprio. Para o governo paraguaio, um mundo onde intentar mudanças é meter mão em ninho de vespas. Asiáticos (sobretudo chineses) e árabes dominam como reis e senhores num território bem ao jeito de filme de cowboys: sem lei.
Fala-se: em Ciudad del Este está uma das principais fontes de rendimento do movimento islâmico Hezzbollah, através das contribuições dos imigrantes libaneses.
Nas ruas atapetadas de terra vermelha de Puerto Iguazú não há comerciantes impingindo mercadoria barata, nem turistas caminhando amontoados pelos passeios. Toma-se uma cerveja na esplanada de um bar aberto 24 horas por dia. Mesmo em pleno Inverno. Especialmente, em pleno Inverno, quando o calor e a humidade amainam um pouco e permitem aos pulmões respirar tranquilamente, enquanto os mosquitos hibernam até aos banquetes de Verão.
A 1600 quilómetros de Buenos Aires, novas galáxias se perfilam. Se de pátrias falamos, muito tem a cabeça que imaginar para deduzir a verdade: estamos no mesmo país cuja capital cosmopolita se engrandece da sua tradição europeia. E de sempre ter vivido no primeiro mundo. As lutas entre a elite da cosmopolita Buenos Aires e a oligarquia rural, garantiram parte da história trágica da Argentina. Hoje, “porteños” (habitantes de Buenos Aires) e “provincianos” continuam a mirar-se depreciativamente. Apenas se juntando no desdém pelo estrangeiro, principalmente em relação aos outros latino-americanos. Conta a anedota, os argentinos usam a altura do seu ego para se suicidarem.
“Sempre se acreditou que a Argentina estava num sítio distinto daquele que lhe havia adjudicado a geografia, o acaso ou a história. (...) Já em 1810 vivíamos obcecados com a grandeza. O que agora nos obceca é o medo a precipitarmo-nos na pequenez. Para evitar esse derrube, repetimos uma e outra vez: Somos grandes, estamos entre os grandes. A única pena é que os grandes não se dão conta do facto”.
Palavras tomadas de empréstimo a Tomás Eloy Martínez, autor de um livro de ensaios sobre a essência de ser argentino, exactamente intitulado “El Sueño Argentino”, para que a coisa não seja interpretada como exagerado despeito de estrangeiro.
Tendo tal em conta, a experiência de Puerto Iguazú assemelha-se a aproximação iniciática ao coração de outra Argentina. A dessas águas barrentas correndo pelas cicatrizes da terra, num país onde a paisagem tem fama (e proveito) de ser regalo divino. Quando Deus criou a Argentina à imagem de um Éden terrestre, colocou nela os argentinos para contrabalançar. Não fosse crescer a inveja e rebentassem guerras.

Monday, March 20, 2006

De Ushuaia a Los Angeles

Em 1984, uma vintena de músicos, técnicos e uma fotógrafa – com câmaras de vídeo, um autocarro, um estúdio móvel de som e um gerador para levar luz até onde não a havia – empreenderam uma das viagens mais importantes para a história da música argentina. A maior parte dos intervenientes vinha do rock e eram liderados por dois homens, León Gieco, rocker com preocupações sociais, e Gustavo Santaolalla, compositor, músico, produtor e apaixonado pelo charango (uma espécie de cavaquinho andino).
O mesmo Santaolalla, diga-se, que se transformaria depois no mais importante produtor musical do rock latino-americano, que se instalou em Los Angeles, onde montou o seu muito solicitado estúdio (La Casa) e onde acabou por se meter nas músicas para filmes com “Amores Perros” (“Love’s a Bitch”). Compôs outras (“21 Grams”, “Motorcycle Diaries”) e este ano ganhou um Óscar com a banda sonora de “Brokeback Mountain”.
A viagem de há mais de 20 anos foi ao mesmo tempo geográfica e etno-musiológica e que a tenha feito gente do rock mostra que por trás do projecto havia, além do interesse intelectual, muita paixão e desejo de registar a riqueza cultural de um país que acabava de emergir de uma ditadura brutal que deixara um rasto de 30 mil desaparecidos.
A jornada a empreender não foi até ao fim do mundo, mas teve o condão de mostrar muitos mundos. Do extremo mais austral do país, no clima antárctico de Ushuaia, até às securas de La Quiaca, terra pobre, dura e quente junto à fronteira com a Bolívia, foram quase 4500 quilómetros de aventura que resultaram, na altura, na edição de apenas um disco por problemas com o selo discográfico.
O projecto era demasiado adiantado para o tempo, Gieco e Santaolalla recuperavam as raízes argentinas quando o país se abria ao exterior para beber do rock anglo-saxónico e a lógica do mercado era contrária à edição de discos muito extensos.
“De Ushuaia a La Quiaca” seria recuperado 15 anos depois pelo diário “Página/12” que se lançou na edição do material em quatro CD com informação e fotografias, demonstrando que as gravações ao invés de empoadas pelo tempo, ganhavam brilho de tesouro e antecipavam em muito tempo o gosto que o mercado viria a ter anos mais tarde pela world music.
Gravando com a chilena Isabel Parra nas margens do rio Pipo na paisagem nevada da Terra do Fogo (Sul) ou com 1500 crianças e 40 professoras no anfiteatro El Cadillal em Tucumán (Norte), “De Ushuaia a La Quiaca” é uma celebração da riqueza musical de um país que é muito mais do que o cliché do tango.
As Zambas, chacareras, vidalas, chamames, corridos, cuartetos, bagualas, cuecas, tonadas, o som das quenas (flautas andinas), somadas ao tango e às milongas do rio de La Plata mostram que a geografia sonora argentina é tão díspar como a física, reflectindo a influência do clima, a importância da história e do povoamento do país.
No noroeste seco e desértico, terra dura, mantém-se a predominância indígena; no ambiente quase selvático do nordeste, onde o clima é húmido e a terra é rica, cruzam-se as influências dos imigrantes agricultores da Europa (ucranianos, polacos, alemães, etc.); na província de Córdoba, a cultura, a forma de falar e a música parecem vir de uma costela mais espanhola; na Patagónia, com a sua paisagem de nada a perder de vista, pouco populosa e fria, a relação com o Chile é mais próxima; Buenos Aires é um mundo aparte, mais demarcado pela influência italiana e por ser uma cidade-porto, berço de uma cultura que tem língua própria (o lunfardo) e cultura que se estende até ao Uruguai e é denominada como rio-platense.
E por aí fora, mostrando que o mundo conhecido é feito de outras camadas de mundos por trás e muitas vezes as identificações simples não são mais do que sínteses simplistas que pretendem ilustrar e apenas obscurecem.
León Gieco foi-se estabelecendo ao longo destes anos como um dos músicos mais activistas da Argentina, participando em inúmeros projectos na defesa dos direitos humanos e continuando a gravar discos para gáudio de uma legião enorme de fãs que extravasam as fronteiras argentinas e se estendem pelo continente americano.
Santaolalla zarpou para Los Angeles em busca de melhores condições para exercer o seu trabalho, assinando alguns dos grandes discos do rock latino-americano dos últimos anos (dos mexicanos Café Tacuba e Molotov, aos argentinos Arbol e Bersuit Vergarabat, passando pelos colombianos Aterciopelados, para falar apenas de alguns). A seu lado continua a ter Anibal Kerpel, músico e engenheiro de som que também participou na aventura “De Ushuaia a La Quiaca”.
Tanto Gieco como Santaolalla procuraram manter ao longo de todos estes anos a ligação com a música popular como base essencial para construir um rock autêntico que não seja cópia do que se vai produzindo nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. Os argentinos não tiveram a revolução do tropicalismo como os brasileiros, mas “De Ushuaia a La Quiaca” foi uma espécie de pequena revolta contra o estabelecido.
Enquanto escrevo estou a ouvir “Ronroco”, o disco que Santaolalla editou em nome próprio na Nonesuch Records em 1998 – na Amazon pode ser adquirido facilmente se tal pretender. Completamente instrumental, com o charango (o ronroco é um charango mais grave) tocado pelo músico/compositor/produtor a dominar as 12 faixas do CD e o acompanhamento do sempre presente Anibal Kerpel – Santaolalla agradeceu-lhe no discurso de aceitação do Oscar de “Brokeback Mountain” –, “Ronroco” é uma viagem nostálgico-intemporal por um mundo que parece real e irreal ao mesmo tempo, vivo e parado no tempo. Um dos temas chama-se precisamente “De Ushuaia a La Quiaca”.

Monday, March 13, 2006

Pequenos poemas sobre energia

O lago, as árvores, a cidade nova, a central nuclear, em tudo se respira um ar bucólico que puxa ao haiku, esse pequeno exercício poético japonês, delicado, simples e breve, a que nem falta o chilreio dos pássaros:

A central emerge,
como desajeitada baleia,
do mar de árvores.

A central nuclear de Igualina, 120 quilómetros a norte de Vilnius, na Lituânia, parece incrustada na paisagem que a rodeia. Era um princípio do mundo quando foi imaginada no início dos anos 70 e um pesadelo de apocalipse quando a construção do segundo reactor foi suspensa e o terceiro reactor não chegou a sair do papel em 1986, ao explodir a sua irmã gémea Chernobyl e transformar-se num caixão nuclear soviético.
O acidente de Chernobyl, ao que parece, surgiu de uma combinação de erros humanos imprevisíveis e em cadeia que pôs em causa as rotinas de segurança da central nuclear. Num país burocrático e controlador como a União Soviética, os mecanismos de controlo não funcionaram e a liberdade humana de errar germinou cogumelos nucleares. Dessa cadeia de erros, se aproveitou o fantasma para assustar – os municípios portugueses de gestão comunista, numa clara contradição com o exemplo de Moscovo e sem qualquer razão plausível a não ser a de propaganda, exibem há muitos anos placas orgulhosas com a inscrição ZLAN – Zona Livre de Armas Nucleares.
O medo marcante de Chernobyl deixou Igualina apenas com uma unidade de produção – canceladas as outras duas previstas –, mesmo assim, capaz de produzir a energia necessária pela Lituânia e ainda garantindo um excedente substancial para melhorar a balança comercial do país.
Só que desde que a Lituânia iniciou as negociações com vista à sua entrada na União Europeia (tal como veio a acontecer em Maio de 2004) que o tema de Igualina se mostrou como uma rocha pesada na construção do bom caminho para as negociações.
Os ambientalistas sempre a apelidaram de bomba-relógio nas barbas da Europa e zurziram no Governo lituano por resistir ao seu encerramento. O director da central, Viktor Shevaldin, garante a segurança absoluta da central, apelida a decisão de a encerrar até 2009 um disparate político e não uma sensata decisão científica, dá-lhe 30 anos de vida útil (até 2016) e com investimentos mais dez anos pelo menos (até 2026).
Só que nenhum argumento tem validez quando toca o medo a rebate. E uma central nuclear é fácil de pintar com as cores do temor generalizado. A morte que caminha silenciosa, os caixões de resíduos que se deixam para gerações e gerações vindouras, o perigo sem cheiro, nem sabor, invisível e impalpável, impossível de vencer.
O carvão que também aquece e o petróleo que também dá luz podem ser facilmente compreensíveis, mas a fusão do átomo! Com quantas palavras simples se pode explicar a enorme energia produzida pela junção de coisas que não se vêem, como os átomos?
E a União Europeia que é pátria de políticos e burocratas e se preocupa com relações públicas, lobbies e interesses nem quis prestar-se ao exercício de melhorar Igualina, de a vender como necessária, de demonstrar que sem ela, a Lituânia precisa de carvão e petróleo para se aquecer, alumiar, mover, carvão e petróleo que não causam tanto medo como a fusão do atómo, mas deixam, sem dúvida, rasto.
Quantos poemas bucólicos se poderiam escrever sobre minas de carvão ou poços de petróleo? Sobre essas marcas da Revolução Industrial escreveram Dickens e Zola páginas e páginas a inspirar uma necessária revolução, porém, ninguém se lembraria de lhes dedicar um poema simples, bucólico, um arremedo como este:

Negro o fumo
no rasto pesado dos pulmões
a gritar futuro.

Da UE, só ouviram os lituanos a ordem de fechar Igualina. E com a central condenada, Visaginas, a mais jovem cidade da Lituânia, 33800 habitantes, parece também ter os dias contados. Embora os seus habitantes queiram acreditar que não, por acreditarem em técnicas alternativas de sobrevivência – quantas cidades morreram a crer no mesmo milagre!
Iniciada com as casas dos primeiros engenheiros nucleares enviados para o local em 1975, recebeu o estatuto de assentamento do tipo urbano em 1977 com o nome de Sniechkus, baptismo que manteve até 1992, quando o Presidente da Lituânia autorizou as armas da cidade de Visaginas construída na margem do maior lago do país, Drukshai – do outro lado fica a Bielorrússia.
Ina Didziuzyte é jovem e fala orgulhosa “deste lugar diferente”, sem lutas, nem “night-clubs”, e acredita nos investimentos no turismo. Ramunas Cizauskas, especialista em turismo, cita o exemplo dos seis milhões de euros investidos para limpar a área do lago, fala na melhoria das infra-estruturas do estádio e nos courts de ténis, na marina, na praia fluvial de areia fina, nos hotéis. Ambos querem acreditar no que dizem.
Uma enorme área em torno de Chernobyl, tornada interdita ao homem por causa das radiações nucleares, está hoje, 20 anos depois, transformada em santuário da vida selvagem e há empresas na Ucrânia especializadas em turismo de aventura na zona proibida. Visaginas não teve nenhum desastre nuclear, apenas uma central gémea de Chernobyl condenada a fechar, o seu é um caso mais difícil para explorar. Em termos turísticos, quero dizer.

A energia inesgotável dos Caretos

Exemplo de um mundo a caminhar para o seu fim, os Caretos resistem a cumprir a sua condenação e todos os anos renovam os votos de se manterem vivos. E regressam sempre para despedir o Inverno e saudar a Primavera. Em Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, todos os anos é assim. Chegado o mês de Fevereiro, os homens envergam os trajes coloridos (elaborados com colchas franjadas de lã ou de linho, em teares caseiros), escondem a cabeça entre duas máscaras de lata, prendem uma enfiada de chocalhos à cintura e bandoleiras de campainhas e despendem toda a energia do mundo para assinalar a chegada do calor e dos dias maiores.
Normalmente, contam com os favores do Sol, magnânimo para quem louva o seu reino com tanto fervor. Religioso também, pois assim se marca, com os últimos estertores da folia, o início da Quaresma. Período de calma, reflexão e contenção do calendário religioso. A cansar no Carnaval para acalmar até à Páscoa.
Há quem vá buscar a origem da festa de Podence ao império romano e às festas Saturnais – celebrações em honra de Saturno, deus das sementeiras. Para acalmar a ira dos céus e garantir os favores de uma boa colheita, os homens libertavam quanta energia guardava o seu corpo. Na agricultura de subsistência, a diferença entre a vida e a morte, em muitos casos, cinge-se à dimensão da lavra. E a dupla máscara acentua a relação romana, ao lembrar uma das mais importantes divindades do império de Roma: Jano, deus do passado e do futuro e também do presente, senhor dos portões e entradas, da guerra e da paz e dono de todos os princípios.
O filho de Apolo, que um dia partilhou o trono com Saturno e conjuntamente civilizaram os habitantes da Itália, levando-os a tal prosperidade que ao reinado chamaram a Era de Ouro, é geralmente representado com duas caras por ser do passado e do futuro, e, principalmente, por ser símbolo do Sol, que aparece de manhã e se esconde à noite.
Passados à parte, em Podence, ainda hoje a agricultura é a principal actividade da população. Da terra se extraem cereais e castanhas, embora, nos últimos anos, tenha aumentado a produção de azeite. Nenhum milagre, tão-somente economias de escala. Apesar de reduzida a poucas centenas de almas, Podence parece ter força suficiente para manter a tradição e garantir a vida a esses bonecos coloridos, recheados de homens endemoninhados, armados de chocalhos e rédea solta para as tropelias. Mesmo se, explicam os mais velhos, o tempo tenha abrandado a folgança e as moças da terra já não acordem no dia seguinte com o corpo amassado e a contar as nódoas no corpo.
Nos anos 70, temeu-se pelo final da tradição. Os últimos anos da ditadura e o fenómeno da emigração aumentaram a pobreza e reduziram as gentes. Seria recuperada uma década mais tarde, quando alguma prosperidade fez respirar um pouco o interior que abraçou também o regresso de alguns dos que se tinham ido à aventura. Hoje por hoje, serão quatro dezenas os homens com fatos de Careto e energia para invadir a praça da aldeia no domingo e terça-feira de Entrudo. E o futuro está garantido, porque há muitos Facanitos (crianças com fatos idênticos aos mais velhos) prontos a tomar o testemunho. Os outros, aqueles que não podem envergar a fatiota, abrem as adegas para matar a sede aos folgazões.
A imunidade conferida pela máscara, permite aos caretos mergulhar nos excessos. Sendo as mulheres solteiras as vítimas preferenciais desses excessos. Encostam-se a elas e ensaiam estranhas danças com conteúdo quase erótico, agitando a cintura e batendo com os chocalhos nas ancas das vítimas que, para bem do corpo, acompanham a dança. E a dança tem nome simples e literal: chocalhar.
Entre o barulho festivo, a risota e o alarido lembram-se outros tempos, em que as mulheres se escondiam em casa pois os foliões iam muito para além dos chocalhos, lançando cinza e dejectos e fustigando as incautas com pele de coelho seca ou bexiga de porco fumada. Para não falar do banho de formigas, partida pesada e cruel com espécimens selvagens recolhidas nos campos durante meses. Também as casas eram invadidas e panela ao lume era panela condenada a ser o seu conteúdo vertido pelo chão, para mal da barriga dos infelizes.
Há quem sonhe em recuperar parte das brincadeiras perdidas, mesmo as mais ousadas, pois teme-se que de tanto aligeirar a tradição se transforme em mera ilustração superficial para turista ver. Ao Careto mau, diabo à solta pelas ruas, Podence quere ver vivo em cada Fevereiro, mesmo que à conta disso não possam dormir descansadas as moçoilas da aldeia.
Porém, com a internacionalização dos últimos anos, tal parece impossível. Realmente, desde as jornadas de Cultura Popular organizadas pela Associação Académica de Coimbra em 1985, importantes para o reavivar da tradição, até aos dias de hoje, os Caretos transmontanos percorreram um lento caminho de divulgação que os levou de Norte a Sul do país, a figurar na capa de um CD da Brigada Victor Jara e até a ultrapassar fronteiras para actuar na Disneyland Paris e no Carnaval de Nice.
Ou seja, tal como outras tradições mais bárbaras cuja aceitação pela Idade Moderna implicou a imposição de certas regras, os Caretos estão mais controlados, mais cientes de que a sua tropelia tem limites até para bem da continuação viva desta manifestação cultural única.
Adaptado ou não a tempos de mais brandos costumes, o Carnaval de Podence mantém o clima fantástico de antes. Sedutores e misteriosos, os Caretos guardam a magia dos tempos em que as histórias junto à lareira franqueavam a entrada em mundos de sonho. A eles tudo se permite; o anonimato dá-lhes prerrogativas; dá-lhes poder. Por dois dias no ano, os homens são crianças e quem mais brinca mais poder tem.

Thursday, February 23, 2006

A cabeça pedida de um caricaturista

Ao final da tarde, por entre o trânsito de buzinas e invenções acrobáticas em duas, três, quatro e até mais rodas, o ar tornava-se palpável, pesado, denso no seu cinzento fumigado. E respirar era um exercício de esperança na capacidade guerreira do oxigénio em tão desigual luta. Esgotos a céu aberto, escapes a céu aberto, mais de um milhão de pessoas sob esse céu aberto.
Com demasiada população para o seu tamanho, a crescer demograficamente a ritmos infernais para poderem ser acompanhados mesmo pela urbanização moderna (duplicou a população em 20 anos), Peshawar, a capital cultural das tribos pastunes que se estendem pelo Paquistão e Afeganistão, entrega-se sempre à noite com cansaço.
Importante ponto da rota da seda, “o lugar na fronteira” (assim quer dizer Peshawar em persa) conforme o baptizou Akbar, um dos grandes imperadores dos mogóis (não confundir com mongóis), dinastia muçulmana de origem turca que reinou da Índia do Sul a Cabul de 1526 a 1857, a cidade teve altos e baixos ao longo dos séculos. Chegaram a chamar-lhe “Cidade das Flores”, “Cidade da Semente” e nos dias do rei kush a “Terra dos Lótus”.
Dos tempos áureos ficou um lugar a morrer de trânsito, de poluição, de deficiências alimentares, de falta de higiene, a morrer da sua própria ignorância manipulada pelos extremistas – embora haja uma elite que continue a estudar na importante universidade, situada num lindo edifício rosado cujas cúpulas irrompem de um tecto de palmeiras.
Porém, ao invés da ciência e das artes, coube outra vez a um imã, na mais importante oração muçulmana, a das sextas-feiras, colocar Peshawar nas notícias internacionais, depois das bombas americanas no Afeganistão a terem transformado num porto de partida para os jornalistas que pretendiam pisar solo afegão em 2001.
Mohammed Yussef Qureshi ofereceu 1,5 milhões de rupias paquistanesas (cerca de 21.000 euros) e um automóvel novo em troca da cabeça do caricaturista que desenhou satiricamente Maomé para o diário dinamarquês “Jyllands-Posten”, ignorando o facto dos 12 desenhos serem de autores diferentes.
Peshawar no fim do mundo, a caminho do Kyber Pass, principal rota em direcção a Cabul, a capital afegã, ponto de passagem para a Ásia Central, usada pelos comerciantes ao longo dos séculos quando circulavam por essa estrada que os britânicos, quando passaram a dominar estas bandas, menos delicados e mais terra-a-terra que os chineses para baptismos, chamaram de “grande estrada dos baús”.
Pois do baú da cidade importante desse império mogol que os portugueses chegaram a recear, quando a rota da Índia contribuía com prosperidade para a corte em Lisboa e o afegão Akbar era um imperador temido, retiram agora os líderes religiosos das “madrassas” (escolas onde se ensina o Alcorão e que formaram os fundamentalistas talibãs) o trunfo que os mantém vivos: o extremismo fanático do livro sagrado muçulmano lido de forma restrita e assim explicado às criancinhas.
Muitos deles apenas corajosos nas suas diatribes contra o Ocidente e os ocidentais. Frases duras, promessas de vingança, anúncios de guerra contra os não-muçulmanos, contra os cruzados e os descrentes, os blasfemos e os indiferentes, os imãs não temem usar palavras guerreiras nas orações, ou, pelo menos, não temem tanto como sentir no corpo a dureza dos “danda” (nome dos bastões de bambu usados pela polícia paquistanesa).
Em 2001, numa manifestação em Peshawar, um dos maiores instigadores da multidão, completamente vestido de branco, barriga proeminente e verbo fácil para conjugar em torno da morte e da “vendetta” muçulmana, pedia encarecidamente aos polícias, olhos chorosos, voz entre o pranto e os soluços, que o não prendessem, que o não levassem. As palavras são relativas, a dor do “danda” e as grades da prisão demasiado concretas.
São estes, porém, quem habilmente manipula multidões, as instiga e lhes indica a direcção a seguir, quem promete em nome do livro sagrado, em nome de Alá, recompensas pelo sangue derramado nesta terra. E a multidão de sujos e desgrenhados seres, com o ar desesperado de quem nada tem e pouco aspira, bebe as palavras como sumo de laranja doce (o fruto que em persa se chama “portogal”) e aponta-se para matar e morrer em nome de uma melhor vida para além desta.
Desta vez foram as caricaturas, antes foram os americanos que ousaram bombardear o regime feudal afegão promovido, apoiado e depois abandonado pelos paquistaneses quando estes perceberam que tinham mais a ganhar como aliados de Washington na pretensa luta contra o terrorismo do que defendendo os turbantes negros dos talibãs.
Dessa grande batalha na guerra interminável contra o terrorismo, os Estados Unidos conseguiram colocar um Governo em Cabul, mais ou menos amarrado pelo poder dos senhores da guerra, sem forças para que o país deixe de ser o maior produtor do mundo de papoilas opiáceas para fabricar heroína e com quase todos os intervenientes de antes.
As burqas azul-bebé continuam a esvoaçar ao vento em terras pastunes, do lado afegão e do lado paquistanês; os homens ainda passeiam de mão dada, trocando afectos em público (embora a homossexualidade permaneça um pecado vista a partir do Alcorão); e o mesmo radicalismo impositivo em termos religiosos permanece como única forma de vida.
Não estranha pois que haja mortos no Paquistão em nome das caricaturas ditas blasfemas de Maomé e que na rua se vejam só os homens a protestar. Por mais erradicação das bases da Al-Qaeda que o Presidente paquistanês, Pervez Musharraf, garanta ter feito, por mais líderes fundamentalistas colocados na prisão, por maior que seja o empenho apregoado de Islamabad na luta contra o terrorismo, nada mudou.
Em Peshawar, em Quetta, em Rawalpindi, em Carachi, em Lahore, para falar apenas nas principais cidades de um país muçulmano (principalmente pastune) construído a partir da herança colonial britânica, as ruas e a sociedade permanecem nas mãos de dois poderes: a elite pertence aos militares, as ruas aos líderes religiosos.
Termino com a tradução de um pequeno conto de Saadat Hasan Manto (1912-1955), considerado o pai da literatura em língua urdu (que se fala no Paquistão) e muitas vezes julgado por obsceno, chama-se “Proposta Perdida”:
“Os dois amigos escolheram finalmente a menina entre a dúzia que lhes tinham mostrado. Custava 42 rupias e trouxeram-na para casa.
Um deles passou a noite com ela.
– Como é que te chamas?, perguntou-lhe.
Quando ela lhe contou, ficou siderado.
– Mas, disseram-nos que eras da outra religião.
– Mentiram, respondeu ela.– Aqueles bastardos enganaram-nos!, gritou, venderam-nos uma rapariga da nossa própria religião. Quero o meu dinheiro de volta!”

Thursday, February 16, 2006

As entranhas da montanha e os girassóis de Van Gogh

A montanha tem entranhas de gasóleo que não maculam a brancura exterior. Por fora, a paisagem não deixa adivinhar a vida fumarenta que os Andes carregam dentro. Só o orifício de sombra no dorso, onde, de tempos a tempos, se escuta um ruído ampliado e dele brota um camião, deixa antever esse mundo interior. Na fronteira andina entre a Argentina e o Chile (chamada Passagem dos Libertadores), quase 3200 metros acima do nível do mar, a cordilheira gera camiões e a paisagem deslumbra.
O cheiro à boca do túnel tem pouco de agradável. Os odores dos múltiplos veículos mesclam-se com o ar pesado da altitude e torna-se necessário caminhar uns metros para ter de novo a montanha no enquadramento e a perfuração negra como pormenor. Não fossem esses traga-alcatrão ecoando desde o nada (o barulho surge minutos antes de poder escrutinar-se a máquina que o provoca) e o silêncio daria à cena dimensão mais profética.
Las Cuevas poderia ser uma aldeia, mas não passa de meia-dúzia de casas de comércio, algumas arruinadas por tempestades passadas, onde se vendem chávenas de chocolate quente para combater o frio. Última paragem da estrada que sobe as montanhas desde o vale de Mendoza, a 761 metros de altitude, onde se situa a capital da homónima província. Fundada em 1561 e assim chamada, diga-se, por sorte do então governador espanhol do Chile, García Hurtado de Mendoza.
A linha de caminho de ferro chega até aqui; os comboios, não. A via jaz abandonada. Incapaz de cumprir tarefa: ligar os dois países. Obra amaldiçoada. Contam: túneis solidificados num dia e estranhamente derrubados durante a noite; homens mortos sem explicação ou com alguma mas pouco credível; dores de cabeça impossíveis de solucionar. Isso, ou a mesma maleita que condenou o comboio como meio de transporte em toda a Argentina: a lógica neoliberal. Carlos Menem, Presidente da Argentina durante os anos 90, encarregou-se de privatizar todas as linhas ao redor de Buenos Aires; para as outras, sob o argumento da falta de rentabilidade, estava guardado o destino da oxidação.
Sem comboios, a via serve agora de estranha atracção desde a janela dos automóveis. Fascinante obra de engenharia bordando a cordilheira e o Rio Mendoza (depois de Punta de Vacas, à entrada do Parque Nacional do Aconcágua, passa a chamar-se Las Cuevas). Primeiro do lado direito, depois do esquerdo, voltando à direita para terminar à esquerda: apenas uma vez cortando o alcatrão da estrada nº7, principal ligação terrestre entre dois países de três mil quilómetros de fronteira comum e imensos conflitos ao longo da história.
Múltiplos túneis, sucessão imensa de postes de electricidade, anos de trabalho desperdiçados. Nem sequer a locomotiva, antes usada para transportar turistas, puxa agora qualquer vagão. A via, ferrugenta, segue aparentemente intacta em todo o seu trajecto. Somente os refúgios de alta montanha, onde se resguardavam os comboios em altura de tempestade, se encontram meio destruídos.
Pelo caminho, a paleta de cores abre-se num leque variado de castanhos e amarelos. Os níveis de precipitação são baixíssimos, principalmente no Inverno. No sopé, o clima é temperado e seco; na cordilheira, árido e frio. Encarregando-se o degelo do Verão de fornecer a água que não cai do céu de Mendoza. Imigrantes espanhóis e argentinos fizeram da região a principal produtora vitivinícola da Argentina. Para fazer jus ao mote da província: terra de sol e de vinho.
O Aconcágua, imponente nos seus 6952 metros de altura – montanha mais alta do Continente, “tecto das Américas” –, ergue-se como farol destas paragens. Uma das duas possíveis origens do nome vem da palavra composta em quechua: “Ackon-cahuac” (“sentinela de pedra”). Outra possibilidade poderá ser a expressão mapuche “Acon-hue”, traduzida como “aquele que vem do outro lado”. Destino favorito de muitos alpinistas de várias latitudes, apesar de opiniões avalizadas considerarem o vulcão Tupungato (segunda elevação mais alta da cordilheira com 6650 metros) como tecnicamente mais difícil de escalar, o Aconcágua foi “conquistado” pela primeira vez pelo italo-suiço Mathias Zurbriggen em 1897.
Mais recentemente, rezava o ano de 1985, membros do Club Andinista de Mendoza descobriram a 5300 metros de altitude uma múmia Inca em perfeito estado de conservação. Prova retumbante de que a montanha serviu de santuário fúnebre na época pré-colombina. E, já no ano 2000, uma expedição militar descobriu a mais de cinco mil metros, os restos de um avião Lancaster desaparecido em 1947 e com os corpos dos seus ocupantes ainda conservados pelo gelo.
A presença do império ameríndio faz-se sentir também mais abaixo, onde a Puente del Inca se encarrega de prolongar o mistério que as montanhas brancas garantem. Uma ponte em pedra natural ao lado de uma fonte de águas sulfurosas. O líquido quente brotando da terra só precisa de 48 horas para transformar em pedra qualquer objecto encontrado pelo caminho. Nas barracas de recordações vendem-se sapatos velhos, garrafas e latas usadas transformados em esculturas pós-modernas por acção da água. O amarelo deixado por esse estranho rio que altera a paisagem, de tão intenso, ganha o jogo das comparações com a neve brilhando ao Sol. Nem os girassóis de Van Gogh possuem cor tão visceral.

Thursday, February 09, 2006

Um toque de finados pelo telegrama

Passou despercebida a notícia neste mundo de muitas, demasiadas notícias e pouca atenção. Acabaram oficialmente os telegramas. A Western Union, última das empresas que ainda mantinha o serviço em funcionamento nos Estados Unidos, decidiu colocar um ponto final no mesmo a 27 de Janeiro. E o anúncio foi feito através de um lacónico e-mail.
Diga-se de passagem, poucos de nós saberíamos dessa possibilidade de enviar telegramas ainda existir. Pelo menos, eu desconhecia (se calhar, trata-se apenas de ignorância minha).
Nunca enviei nenhum na minha vida. Tendo em atenção o facto de ter nascido em 1970, o mais estranho seria tê-lo feito! Nem me consta, pelas histórias familiares, que o meu pai tivesse recorrido a esses serviços para fazer saber à família em Portugal do nascimento do seu primogénito (e único filho) na Alemanha: “Rapaz nasceu bem 3 quilos 650”.
Obriga a nostalgia, porta aberta sem controlo nas águas furtadas da nossa mente, sentirmos, porém, certa tristeza, mesmo ínfima, quando vemos desaparecer algo que fazia parte do nosso mundo.
É essa nostalgia que move os coleccionadores, alguns historiadores e a maior parte de nós, seres humanos, quando voltamos pelos caminhos percorridos para tentar recuperar auras passadas.
A nostalgia pelo tempo esgotado vai aumentando à medida que envelhecemos, em contraste com a diminuição da euforia em relação ao futuro. É natural, nada de transcendente. Mais novos, estamos abertos a tudo e tudo queremos saber, mais idosos, mais conscientes, aprendemos a relativizar as coisas e a valorizar o adquirido.
Para quem tenha percebido neste texto a intenção bafienta de garantir em voz alta um “no meu tempo é que era bom”, saiba duas coisas: primeiro, ainda não tenho idade para isso e espero nunca vir a ter; segundo, o passado nunca poderá ser bom porque morreu – a memória pode consolar-nos, compungir-nos, soltar em nós bons ou maus pensamentos, ajudar-nos a compreender, viver para ela é morrer antes de tempo.
Esclarecido o possível mal entendido, adiante. Serve esta deambulação para falar do que estas crónicas pretendem sempre falar: de outros mundos. Tangencial, paralela, geográfica ou interiormente existentes em relação ao que nos tocou viver. Tal como o mundo do passado, para onde são enviadas as coisas condenadas pelo futuro e imprestáveis no presente.
O telegrama estava decididamente condenado pelo futuro. Em tempo de mensagens de telemóvel, correios electrónicos e telefonemas mais baratos, onde já as missivas em papel vão escasseando, o telegrama cumpria papel incongruente se é que algum papel representava todavia. Estava aí sem ser notado. Já tinha morrido, mas só agora a Western Union se lembrou de enviar um correio electrónico a avisar. As ironias do progresso.
Ao telegrama coube protagonismo, depois papel secundário, finalmente o esquecimento. Como as estrelas do cinema mudo que o sonoro foi substituindo, lembradas a posteriori apenas por alturas do obituário. “O telegrama morreu. Há muito dele se não ouvia falar. Foi-se sem palavras próprias, apenas notícia alheia.”
No entanto, se o telegrama como o conhecemos morreu, há quem tente ainda modernizar o conceito, cobrar à página em vez de à palavra, aceitar desenhos, logótipos, acertar hora de entrega ou garanti-la nas duas horas posteriores ao envio.
Os Correios do Brasil criaram o Novo Telegrama e publicitam-no desta forma na Internet: “Além de mais bonito, ele é também mais moderno, funcional e cheio de novidades. O preço passou a ser por página enviada e não mais por palavras. Outra novidade é que as palavras vêm acentuadas e o texto pontuado!”
Vivemos tempos de modernidade retro, da cultura feita do baralhar e voltar a dar conceitos antigos; da arte ao comércio, o passado é moderno. Do sabão branco ao Volkswagen Carocha, passando pelas calças à boca-de-sino.
E, como em todos os casos, o Novo Telegrama dos Correios do Brasil não é o telegrama, tão-somente coisa moderna usando termo conhecido para se designar e publicitar.
Tal como sabemos que o detergente da roupa com sabão não é o sabão, o Novo Telegrama tem pouco de telegrama e muito de novo.
Com o telegrama desaparece a ideia de um certo mundo. Um mundo dos românticos aventureiros e exploradores. Um mundo de mundos desconhecidos, de Richard Burtons, de Lawrences da Arábia, de Amundsens, de Gagos Coutinhos e Sacaduras Cabral. Um mundo que se desvendava à custa de temerários – dos que sobreviviam e dos que morriam.
Há menos de 100 anos o homem chegava pela primeira vez ao Pólo Norte, há pouco mais de 50 conquistava o cume do Evereste e há menos de 40 pisava pela primeira vez a Lua. Uma evolução vertiginosa testemunhada pelo telegrama.
Veio o telefone, melhoraram os correios, progrediram as telecomunicações, mas foi o computador e a Internet a dar a machadada final no telegrama. A instantaneidade da comunicação, o acesso universal, tornaram obsoleto o meio inventado por Samuel Morse.
A primeira mensagem enviada por Morse, a 24 de Maio de 1844, de Baltimore para Washington, foi uma citação da Bíblia: “What hath God wrought?” (O que é que Deus criou?).
O serviço da Western Union, ao anunciar o fim dos telegramas, foi mais lacónico: “Efectivo a 27 de Janeiro de 2006, a Western Union vai descontinuar todos os serviços de Telegramas e Mensagens Comerciais. Lamentamos qualquer inconveniente que lhe possa causar e agradecemos o seu leal apoio”.
Entre uma e outra passaram quase 162 anos e muitos mais mundos. Dobram os sinos, o telegrama já é passado.

Thursday, February 02, 2006

Pela cruz de Cristo

O princípio da noite estava carregado de nebulosidade e frustração. Dia para esquecer. Povoada por um grosso manto de nevoeiro e uma camada substancial de humidade, Montevideu apenas enregelara os ossos. Da cidade encantadora à entrada do Rio de La Plata, poucas pistas. Nada capaz de vencer a tristeza molhada que, subindo das águas barrentas, acinzentava os olhares até reduzi-los à mudez. A caminho do barco de regresso a Buenos Aires, pensava no afortunado que era por ter escolhido o outro lado para fixar residência. Nem mesmo no pior dos seus dias, a capital argentina transmitia sensação similar.
Mas nada acaba enquanto não exercite a gorda senhora os seus dotes de canto e até nos burocráticos e mecânicos gestos de um controlo de fronteira se pode resgatar uma cidade. Montevideo ressuscitou por premissa desse oficial de alfândega. Tendo entre mãos o passaporte português, inundou-se-lhe a cara de um sorriso para me dizer: “Soy hincha del Belenenses. El de la Cruz de Cristo.” (Sou adepto do Belenenses. O da Cruz de Cristo.)
Por aí ficou a nossa cumplicidade. A fronteira não é bom lugar para conversas, principalmente quando uma fila de gente vigia, documentos em riste, qualquer minuto perdido em atitudes pouco consentâneas com a solenidade do lugar. Nesse aspecto tem muito de Igreja: espera-se não ter pecados suficientemente importantes que nos obriguem a quedar espiando culpas. Por aí ficou a nossa cumplicidade, mas é como essa simples frase tivesse estabelecido uma relação especial e inquebrantável entre mim, esse empregado de alfândega, Portugal e Montevideu.
Lembrando Hitchcock, aquele McGuffin (algo que não pertence directamente à narrativa, embora ajude a marcar o ambiente) evitou o desmoronamento em mim da imagem literária da cidade. Encontrar um adepto do Belenenses tão longe do Restelo foi como a chave para reordenar a experiência própria com a experiência dos outros. Sem tentar substituir o rio de La Plata pelo Tejo, Montevideu estendia-me o convite para regressar.
No passado, pela Cruz de Cristo, outros portugueses por aqui andaram. Ou, pelo menos, assumindo a cruzada missionária como marketing e outras actividades por subsistência. A 170 quilómetros da capital, Colónia do Sacramento teve em Manuel Lobo o seu fundador. Corria o ano de 1680 e, desafiando o poder espanhol no Rio de La Plata, os portugueses instalavam um entreposto de contrabando nas barbas do inimigo histórico: os produtos britânicos chegavam assim a Buenos Aires rompendo o bloqueio comercial monopolista imposto pela corte de Madrid.
Os espanhóis responderam com Montevideu, em 1726. Contra portugueses, britânicos, franceses e até dinamarqueses, Filipe V erigia a praça-forte para recuperar o esplendor passado do império, depois da decadência político-militar e económica do século XVII e a guerra pela sucessão ao trono que o ocupou durante o primeiro decénio setecentista.
Produto típico da emigração do século XIX, princípios do século XX, o Uruguai tornou-se conclave europeu no hemisfério Sul. Feito à imagem da herança genética das vagas migratórias do Velho Continente. Os índios charrua, ancestrais habitantes da região, nunca foram numerosos e hoje descendentes desses antigos autóctones existem poucos, a maioria junto à fronteira com o Brasil.
Se em Montevideu o mais antigo edifício ainda existente tem assinatura do arquitecto português José de Sá Faria (trata-se da igreja matriz erigida durante 15 anos e inaugurada em 1799); se a avenida marginal que percorre os bairros da classe média alta nos arredores da capital aparece, a determinada altura, baptizada como Portugal; encontrar um adepto de um clube português por aqui não deve ser único.
Noutros lugares, surgem conhecedores de Benfica, Porto, Sporting, Eusébio ou de alguns dos jogadores lusos de hoje, que mostram maravilhas visíveis em campeonatos televisionados universalmente. Fanáticos de futebol são mesmo capazes de citar um par de equipas mais do campeonato nacional. Agora, exclamar de chofre, perante a palavra Portugal, “sou adepto do Belenenses” e, ainda por cima, acrescentar, “o da Cruz de Cristo”, implica mais do que a simples percepção de nome em página desportiva de jornal.
A época de Matateu passou há muito. O campeonato nacional de 1945 mantém-se como único na galeria de troféus do clube e os altos e baixos dos últimos anos foram afastando o histórico de Lisboa dos tempos de glória e, logicamente, dos encontros internacionais. Sem qualquer menosprezo, encontrar no estrangeiro um adepto da equipa do Restelo resulta, no mínimo, difícil. Quanto mais se nada tem de português.
A confissão daquele funcionário no porto internacional de Montevideu faz renascer laços históricos. Aponta para além do futebol; para além da experiência particular. Mostrando um presente herdeiro de cruzamentos, misturas, migrações. Feito da história de muitas histórias que o acaso se encarregou de cruzar. Quem poderá, então, jurar da pureza sanguínea, se, como os rios, o sangue que nos corre nas veias veio de muitos afluentes?