Thursday, February 09, 2006

Um toque de finados pelo telegrama

Passou despercebida a notícia neste mundo de muitas, demasiadas notícias e pouca atenção. Acabaram oficialmente os telegramas. A Western Union, última das empresas que ainda mantinha o serviço em funcionamento nos Estados Unidos, decidiu colocar um ponto final no mesmo a 27 de Janeiro. E o anúncio foi feito através de um lacónico e-mail.
Diga-se de passagem, poucos de nós saberíamos dessa possibilidade de enviar telegramas ainda existir. Pelo menos, eu desconhecia (se calhar, trata-se apenas de ignorância minha).
Nunca enviei nenhum na minha vida. Tendo em atenção o facto de ter nascido em 1970, o mais estranho seria tê-lo feito! Nem me consta, pelas histórias familiares, que o meu pai tivesse recorrido a esses serviços para fazer saber à família em Portugal do nascimento do seu primogénito (e único filho) na Alemanha: “Rapaz nasceu bem 3 quilos 650”.
Obriga a nostalgia, porta aberta sem controlo nas águas furtadas da nossa mente, sentirmos, porém, certa tristeza, mesmo ínfima, quando vemos desaparecer algo que fazia parte do nosso mundo.
É essa nostalgia que move os coleccionadores, alguns historiadores e a maior parte de nós, seres humanos, quando voltamos pelos caminhos percorridos para tentar recuperar auras passadas.
A nostalgia pelo tempo esgotado vai aumentando à medida que envelhecemos, em contraste com a diminuição da euforia em relação ao futuro. É natural, nada de transcendente. Mais novos, estamos abertos a tudo e tudo queremos saber, mais idosos, mais conscientes, aprendemos a relativizar as coisas e a valorizar o adquirido.
Para quem tenha percebido neste texto a intenção bafienta de garantir em voz alta um “no meu tempo é que era bom”, saiba duas coisas: primeiro, ainda não tenho idade para isso e espero nunca vir a ter; segundo, o passado nunca poderá ser bom porque morreu – a memória pode consolar-nos, compungir-nos, soltar em nós bons ou maus pensamentos, ajudar-nos a compreender, viver para ela é morrer antes de tempo.
Esclarecido o possível mal entendido, adiante. Serve esta deambulação para falar do que estas crónicas pretendem sempre falar: de outros mundos. Tangencial, paralela, geográfica ou interiormente existentes em relação ao que nos tocou viver. Tal como o mundo do passado, para onde são enviadas as coisas condenadas pelo futuro e imprestáveis no presente.
O telegrama estava decididamente condenado pelo futuro. Em tempo de mensagens de telemóvel, correios electrónicos e telefonemas mais baratos, onde já as missivas em papel vão escasseando, o telegrama cumpria papel incongruente se é que algum papel representava todavia. Estava aí sem ser notado. Já tinha morrido, mas só agora a Western Union se lembrou de enviar um correio electrónico a avisar. As ironias do progresso.
Ao telegrama coube protagonismo, depois papel secundário, finalmente o esquecimento. Como as estrelas do cinema mudo que o sonoro foi substituindo, lembradas a posteriori apenas por alturas do obituário. “O telegrama morreu. Há muito dele se não ouvia falar. Foi-se sem palavras próprias, apenas notícia alheia.”
No entanto, se o telegrama como o conhecemos morreu, há quem tente ainda modernizar o conceito, cobrar à página em vez de à palavra, aceitar desenhos, logótipos, acertar hora de entrega ou garanti-la nas duas horas posteriores ao envio.
Os Correios do Brasil criaram o Novo Telegrama e publicitam-no desta forma na Internet: “Além de mais bonito, ele é também mais moderno, funcional e cheio de novidades. O preço passou a ser por página enviada e não mais por palavras. Outra novidade é que as palavras vêm acentuadas e o texto pontuado!”
Vivemos tempos de modernidade retro, da cultura feita do baralhar e voltar a dar conceitos antigos; da arte ao comércio, o passado é moderno. Do sabão branco ao Volkswagen Carocha, passando pelas calças à boca-de-sino.
E, como em todos os casos, o Novo Telegrama dos Correios do Brasil não é o telegrama, tão-somente coisa moderna usando termo conhecido para se designar e publicitar.
Tal como sabemos que o detergente da roupa com sabão não é o sabão, o Novo Telegrama tem pouco de telegrama e muito de novo.
Com o telegrama desaparece a ideia de um certo mundo. Um mundo dos românticos aventureiros e exploradores. Um mundo de mundos desconhecidos, de Richard Burtons, de Lawrences da Arábia, de Amundsens, de Gagos Coutinhos e Sacaduras Cabral. Um mundo que se desvendava à custa de temerários – dos que sobreviviam e dos que morriam.
Há menos de 100 anos o homem chegava pela primeira vez ao Pólo Norte, há pouco mais de 50 conquistava o cume do Evereste e há menos de 40 pisava pela primeira vez a Lua. Uma evolução vertiginosa testemunhada pelo telegrama.
Veio o telefone, melhoraram os correios, progrediram as telecomunicações, mas foi o computador e a Internet a dar a machadada final no telegrama. A instantaneidade da comunicação, o acesso universal, tornaram obsoleto o meio inventado por Samuel Morse.
A primeira mensagem enviada por Morse, a 24 de Maio de 1844, de Baltimore para Washington, foi uma citação da Bíblia: “What hath God wrought?” (O que é que Deus criou?).
O serviço da Western Union, ao anunciar o fim dos telegramas, foi mais lacónico: “Efectivo a 27 de Janeiro de 2006, a Western Union vai descontinuar todos os serviços de Telegramas e Mensagens Comerciais. Lamentamos qualquer inconveniente que lhe possa causar e agradecemos o seu leal apoio”.
Entre uma e outra passaram quase 162 anos e muitos mais mundos. Dobram os sinos, o telegrama já é passado.

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