Thursday, February 02, 2006

Pela cruz de Cristo

O princípio da noite estava carregado de nebulosidade e frustração. Dia para esquecer. Povoada por um grosso manto de nevoeiro e uma camada substancial de humidade, Montevideu apenas enregelara os ossos. Da cidade encantadora à entrada do Rio de La Plata, poucas pistas. Nada capaz de vencer a tristeza molhada que, subindo das águas barrentas, acinzentava os olhares até reduzi-los à mudez. A caminho do barco de regresso a Buenos Aires, pensava no afortunado que era por ter escolhido o outro lado para fixar residência. Nem mesmo no pior dos seus dias, a capital argentina transmitia sensação similar.
Mas nada acaba enquanto não exercite a gorda senhora os seus dotes de canto e até nos burocráticos e mecânicos gestos de um controlo de fronteira se pode resgatar uma cidade. Montevideo ressuscitou por premissa desse oficial de alfândega. Tendo entre mãos o passaporte português, inundou-se-lhe a cara de um sorriso para me dizer: “Soy hincha del Belenenses. El de la Cruz de Cristo.” (Sou adepto do Belenenses. O da Cruz de Cristo.)
Por aí ficou a nossa cumplicidade. A fronteira não é bom lugar para conversas, principalmente quando uma fila de gente vigia, documentos em riste, qualquer minuto perdido em atitudes pouco consentâneas com a solenidade do lugar. Nesse aspecto tem muito de Igreja: espera-se não ter pecados suficientemente importantes que nos obriguem a quedar espiando culpas. Por aí ficou a nossa cumplicidade, mas é como essa simples frase tivesse estabelecido uma relação especial e inquebrantável entre mim, esse empregado de alfândega, Portugal e Montevideu.
Lembrando Hitchcock, aquele McGuffin (algo que não pertence directamente à narrativa, embora ajude a marcar o ambiente) evitou o desmoronamento em mim da imagem literária da cidade. Encontrar um adepto do Belenenses tão longe do Restelo foi como a chave para reordenar a experiência própria com a experiência dos outros. Sem tentar substituir o rio de La Plata pelo Tejo, Montevideu estendia-me o convite para regressar.
No passado, pela Cruz de Cristo, outros portugueses por aqui andaram. Ou, pelo menos, assumindo a cruzada missionária como marketing e outras actividades por subsistência. A 170 quilómetros da capital, Colónia do Sacramento teve em Manuel Lobo o seu fundador. Corria o ano de 1680 e, desafiando o poder espanhol no Rio de La Plata, os portugueses instalavam um entreposto de contrabando nas barbas do inimigo histórico: os produtos britânicos chegavam assim a Buenos Aires rompendo o bloqueio comercial monopolista imposto pela corte de Madrid.
Os espanhóis responderam com Montevideu, em 1726. Contra portugueses, britânicos, franceses e até dinamarqueses, Filipe V erigia a praça-forte para recuperar o esplendor passado do império, depois da decadência político-militar e económica do século XVII e a guerra pela sucessão ao trono que o ocupou durante o primeiro decénio setecentista.
Produto típico da emigração do século XIX, princípios do século XX, o Uruguai tornou-se conclave europeu no hemisfério Sul. Feito à imagem da herança genética das vagas migratórias do Velho Continente. Os índios charrua, ancestrais habitantes da região, nunca foram numerosos e hoje descendentes desses antigos autóctones existem poucos, a maioria junto à fronteira com o Brasil.
Se em Montevideu o mais antigo edifício ainda existente tem assinatura do arquitecto português José de Sá Faria (trata-se da igreja matriz erigida durante 15 anos e inaugurada em 1799); se a avenida marginal que percorre os bairros da classe média alta nos arredores da capital aparece, a determinada altura, baptizada como Portugal; encontrar um adepto de um clube português por aqui não deve ser único.
Noutros lugares, surgem conhecedores de Benfica, Porto, Sporting, Eusébio ou de alguns dos jogadores lusos de hoje, que mostram maravilhas visíveis em campeonatos televisionados universalmente. Fanáticos de futebol são mesmo capazes de citar um par de equipas mais do campeonato nacional. Agora, exclamar de chofre, perante a palavra Portugal, “sou adepto do Belenenses” e, ainda por cima, acrescentar, “o da Cruz de Cristo”, implica mais do que a simples percepção de nome em página desportiva de jornal.
A época de Matateu passou há muito. O campeonato nacional de 1945 mantém-se como único na galeria de troféus do clube e os altos e baixos dos últimos anos foram afastando o histórico de Lisboa dos tempos de glória e, logicamente, dos encontros internacionais. Sem qualquer menosprezo, encontrar no estrangeiro um adepto da equipa do Restelo resulta, no mínimo, difícil. Quanto mais se nada tem de português.
A confissão daquele funcionário no porto internacional de Montevideu faz renascer laços históricos. Aponta para além do futebol; para além da experiência particular. Mostrando um presente herdeiro de cruzamentos, misturas, migrações. Feito da história de muitas histórias que o acaso se encarregou de cruzar. Quem poderá, então, jurar da pureza sanguínea, se, como os rios, o sangue que nos corre nas veias veio de muitos afluentes?

2 Comments:

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