Saturday, January 07, 2006

Ideias do sul

A caminho do fim do mundo leio um texto de Björk sobre outro fim do mundo. Razão para questionar o que é verdadeiramente esse lugar íntimo onde a civilização conhecida deixa espaço à natureza e o homem se queda a sós consigo próprio. 360 graus de céu aberto e um lago e um fio de vapor libertado por uma nascente de água quente, como escreve a cantora islandesa? Ou este risco que atravessa uma terra tão plana que dá para duvidar da redondez do planeta? E a areia negra das praias abrindo caminho para a transformação em azul turquesa, quando a planície terrena encontra a planura do mar? Na paisagem de arbustos rasteiros, os únicos capazes de suportar o vento permanente, desenha-se a estrada como risco feito por mãe esmerada na cabeça de seu rebento a caminho da missa. Bem-vindos à Patagónia.
Uma aterragem perfeita no aeroporto de Trelew. Da cidade, nem rasto. Invenção de geógrafos para menos desolação da terra? Do guia saco a informação: Trelew, conveniente paragem para quem pretenda visitar as vilas galesas de Gaiman e Dolavon (e a reserva de pinguins). As duas povoações recriam arquitecturas e hábitos do outro lado do Atlântico. Forma de evitar saudade mais dolorosa. Lady Di aproveitou para tomar o chá das cinco em Gaiman, quando por aqui andou de visita, numa casa que de Gales parecia ter chegado intacta, apenas enganada na geografia.
Tre é cidade em galês e Lew abreviatura do também galês Lewis Jones, promotor da expansão do caminho de ferro na região. Caminho de ferro que o governo de Carlos Menem se encarregou de destruir como meio de transporte, acabando com os subsídios à exploração de linhas. Subsídios que o executivo não deixou, no entanto, de garantir às empresas privadas que exploram os ramais de Buenos Aires e arredores. Permitindo aos empresários gerir o negócio como companhias estatais: com tantas benesses e lucros em troca de quase nada. Os bilhetes continuam baratos, apenas porque uma viagem de comboio ainda é o melhor garante para tirar as dúvidas: isto não é a Europa (como a capital argentina pretende fazer crer ao distraído transeunte).
Comboios dos subúrbios de Buenos Aires. Cada banco parece kit de tortura ambulante. Torturas democráticas de somenos importância quando se lembram outras, a dos apoderados de Videla, Galtieri, Massera e companhia entretendo-se a dilacerar física e psicologicamente “subversivos” nessa “grande” e “justa guerra” dos anos 70 – a da ditadura militar que dominou o país de 1976 a 1983 e se lançou esfaimada a matar tudo aquilo capaz de cheirar a comunista. Guerra capaz de incluir crianças, mulheres, homens, cães, gatos, prata, ouro, jóias, dinheiro e tudo o que pudesse atentar contra a boa vida dos cidadãos argentinos. Tudo “desapareceu”: homens e mulheres voaram pelos céus até ao Atlântico Sul e não regressaram (continuam “desaparecidos”); as crianças, poupadas à educação “diabólica” da cartilha comunista, cresceram ignorantes na casa dos assassinos; ouro, prata, jóias e dinheiro passaram, logicamente, para a mão dos valorosos defensores da pátria, guardados em contas nos silenciosos bancos suiços.
Heróis, grandes heróis, depois rebelados contra os imperialistas britânicos das Malvinas numa luta que logicamente perderam, que logicamente deixou traumas e que, também logicamente, demonstrou como às vezes as medalhas desses pobres de uniforme lhes deixa a ilusão de estar perto de Deus. Heróis como o capitão Astiz, braço eficiente de ordens superiores. Excelso guerreiro na luta antisubversiva, depois prisioneiro nas Malvinas, onde se rendeu sem disparar um único tiro. Provavelmente, por não querer ter na consciência a morte de pobres soldados estrangeiros. Matar, só mesmo argentinos – se desarmados, melhor!
E os pensamentos regressam à Patagónia vista do avião. Ao chegar a Rio Gallegos, última cidade antes do Estreito de Magalhães – divisão natural entre o continente e a Ilha Grande da Terra do Fogo –, o enquadramento surpreende os mais distraídos. A terra segue sempre igual até ver o mar, para acabar abruptamente, como morto na praia. Aborrecida com a monotonia da terra amarelada, protesta assim, qual parágrafo deixado sem conclusão.
A Patagónia não existe. Foi inventada por europeus. Descrita pelos inúmeros viajantes perdidos num espaço sem montanhas, nem árvores para servir de coordenadas. Como Bruce Chatwin que transformou um livro em paisagem e contribuiu para aumentar o fluxo de turistas que todos os anos deambulam pela região à procura de novas experiências – à boa moda da Índia, com menos cheiro a incenso. Espaço de andarilhos e silêncio. “Assim é a nossa raça: recebemos o nome segundo a terra que nos recebe” afirmavam os índios Yaganes, hoje extintos como quase toda a população indígena da Argentina.Muito menos existe para os políticos da capital. O Sul vive apesar de Buenos Aires. O Sul da do palácio presidencial da Casa Rosada tem mais a ver com as ilhas Malvinas e essa insistência obsessiva de todos os argentinos por recuperar o território usurpado pelos ingleses. Um arquipélago que à Argentina, país independente, pertenceu apenas uma dúzia de anos. Os kelpers (habitantes das Falklands, na terminologia britânica) preferem ser cidadãos de segunda de Sua Majestade que cidadãos argentinos de primeira. A história ensinou-lhes ser pouco apreciada, na região, a palavra estabilidade e o discurso ambíguo causa-lhes temor. Os kelpers nada têm de argentinos, nem sequer de britânicos. São apenas duas mil almas rudes e fechadas criando ovelhas num par de ilhas no meio do inóspito clima do Atlântico Sul. Em dias de bom tempo (poucos), das Malvinas vê-se a Patagónia. Mas, nem nos dias mais lindos, se vislumbram as costa da Velha Albion.

(crónica publicada a 05 de Janeiro)

0 Comments:

Post a Comment

<< Home