Thursday, February 23, 2006

A cabeça pedida de um caricaturista

Ao final da tarde, por entre o trânsito de buzinas e invenções acrobáticas em duas, três, quatro e até mais rodas, o ar tornava-se palpável, pesado, denso no seu cinzento fumigado. E respirar era um exercício de esperança na capacidade guerreira do oxigénio em tão desigual luta. Esgotos a céu aberto, escapes a céu aberto, mais de um milhão de pessoas sob esse céu aberto.
Com demasiada população para o seu tamanho, a crescer demograficamente a ritmos infernais para poderem ser acompanhados mesmo pela urbanização moderna (duplicou a população em 20 anos), Peshawar, a capital cultural das tribos pastunes que se estendem pelo Paquistão e Afeganistão, entrega-se sempre à noite com cansaço.
Importante ponto da rota da seda, “o lugar na fronteira” (assim quer dizer Peshawar em persa) conforme o baptizou Akbar, um dos grandes imperadores dos mogóis (não confundir com mongóis), dinastia muçulmana de origem turca que reinou da Índia do Sul a Cabul de 1526 a 1857, a cidade teve altos e baixos ao longo dos séculos. Chegaram a chamar-lhe “Cidade das Flores”, “Cidade da Semente” e nos dias do rei kush a “Terra dos Lótus”.
Dos tempos áureos ficou um lugar a morrer de trânsito, de poluição, de deficiências alimentares, de falta de higiene, a morrer da sua própria ignorância manipulada pelos extremistas – embora haja uma elite que continue a estudar na importante universidade, situada num lindo edifício rosado cujas cúpulas irrompem de um tecto de palmeiras.
Porém, ao invés da ciência e das artes, coube outra vez a um imã, na mais importante oração muçulmana, a das sextas-feiras, colocar Peshawar nas notícias internacionais, depois das bombas americanas no Afeganistão a terem transformado num porto de partida para os jornalistas que pretendiam pisar solo afegão em 2001.
Mohammed Yussef Qureshi ofereceu 1,5 milhões de rupias paquistanesas (cerca de 21.000 euros) e um automóvel novo em troca da cabeça do caricaturista que desenhou satiricamente Maomé para o diário dinamarquês “Jyllands-Posten”, ignorando o facto dos 12 desenhos serem de autores diferentes.
Peshawar no fim do mundo, a caminho do Kyber Pass, principal rota em direcção a Cabul, a capital afegã, ponto de passagem para a Ásia Central, usada pelos comerciantes ao longo dos séculos quando circulavam por essa estrada que os britânicos, quando passaram a dominar estas bandas, menos delicados e mais terra-a-terra que os chineses para baptismos, chamaram de “grande estrada dos baús”.
Pois do baú da cidade importante desse império mogol que os portugueses chegaram a recear, quando a rota da Índia contribuía com prosperidade para a corte em Lisboa e o afegão Akbar era um imperador temido, retiram agora os líderes religiosos das “madrassas” (escolas onde se ensina o Alcorão e que formaram os fundamentalistas talibãs) o trunfo que os mantém vivos: o extremismo fanático do livro sagrado muçulmano lido de forma restrita e assim explicado às criancinhas.
Muitos deles apenas corajosos nas suas diatribes contra o Ocidente e os ocidentais. Frases duras, promessas de vingança, anúncios de guerra contra os não-muçulmanos, contra os cruzados e os descrentes, os blasfemos e os indiferentes, os imãs não temem usar palavras guerreiras nas orações, ou, pelo menos, não temem tanto como sentir no corpo a dureza dos “danda” (nome dos bastões de bambu usados pela polícia paquistanesa).
Em 2001, numa manifestação em Peshawar, um dos maiores instigadores da multidão, completamente vestido de branco, barriga proeminente e verbo fácil para conjugar em torno da morte e da “vendetta” muçulmana, pedia encarecidamente aos polícias, olhos chorosos, voz entre o pranto e os soluços, que o não prendessem, que o não levassem. As palavras são relativas, a dor do “danda” e as grades da prisão demasiado concretas.
São estes, porém, quem habilmente manipula multidões, as instiga e lhes indica a direcção a seguir, quem promete em nome do livro sagrado, em nome de Alá, recompensas pelo sangue derramado nesta terra. E a multidão de sujos e desgrenhados seres, com o ar desesperado de quem nada tem e pouco aspira, bebe as palavras como sumo de laranja doce (o fruto que em persa se chama “portogal”) e aponta-se para matar e morrer em nome de uma melhor vida para além desta.
Desta vez foram as caricaturas, antes foram os americanos que ousaram bombardear o regime feudal afegão promovido, apoiado e depois abandonado pelos paquistaneses quando estes perceberam que tinham mais a ganhar como aliados de Washington na pretensa luta contra o terrorismo do que defendendo os turbantes negros dos talibãs.
Dessa grande batalha na guerra interminável contra o terrorismo, os Estados Unidos conseguiram colocar um Governo em Cabul, mais ou menos amarrado pelo poder dos senhores da guerra, sem forças para que o país deixe de ser o maior produtor do mundo de papoilas opiáceas para fabricar heroína e com quase todos os intervenientes de antes.
As burqas azul-bebé continuam a esvoaçar ao vento em terras pastunes, do lado afegão e do lado paquistanês; os homens ainda passeiam de mão dada, trocando afectos em público (embora a homossexualidade permaneça um pecado vista a partir do Alcorão); e o mesmo radicalismo impositivo em termos religiosos permanece como única forma de vida.
Não estranha pois que haja mortos no Paquistão em nome das caricaturas ditas blasfemas de Maomé e que na rua se vejam só os homens a protestar. Por mais erradicação das bases da Al-Qaeda que o Presidente paquistanês, Pervez Musharraf, garanta ter feito, por mais líderes fundamentalistas colocados na prisão, por maior que seja o empenho apregoado de Islamabad na luta contra o terrorismo, nada mudou.
Em Peshawar, em Quetta, em Rawalpindi, em Carachi, em Lahore, para falar apenas nas principais cidades de um país muçulmano (principalmente pastune) construído a partir da herança colonial britânica, as ruas e a sociedade permanecem nas mãos de dois poderes: a elite pertence aos militares, as ruas aos líderes religiosos.
Termino com a tradução de um pequeno conto de Saadat Hasan Manto (1912-1955), considerado o pai da literatura em língua urdu (que se fala no Paquistão) e muitas vezes julgado por obsceno, chama-se “Proposta Perdida”:
“Os dois amigos escolheram finalmente a menina entre a dúzia que lhes tinham mostrado. Custava 42 rupias e trouxeram-na para casa.
Um deles passou a noite com ela.
– Como é que te chamas?, perguntou-lhe.
Quando ela lhe contou, ficou siderado.
– Mas, disseram-nos que eras da outra religião.
– Mentiram, respondeu ela.– Aqueles bastardos enganaram-nos!, gritou, venderam-nos uma rapariga da nossa própria religião. Quero o meu dinheiro de volta!”

Thursday, February 16, 2006

As entranhas da montanha e os girassóis de Van Gogh

A montanha tem entranhas de gasóleo que não maculam a brancura exterior. Por fora, a paisagem não deixa adivinhar a vida fumarenta que os Andes carregam dentro. Só o orifício de sombra no dorso, onde, de tempos a tempos, se escuta um ruído ampliado e dele brota um camião, deixa antever esse mundo interior. Na fronteira andina entre a Argentina e o Chile (chamada Passagem dos Libertadores), quase 3200 metros acima do nível do mar, a cordilheira gera camiões e a paisagem deslumbra.
O cheiro à boca do túnel tem pouco de agradável. Os odores dos múltiplos veículos mesclam-se com o ar pesado da altitude e torna-se necessário caminhar uns metros para ter de novo a montanha no enquadramento e a perfuração negra como pormenor. Não fossem esses traga-alcatrão ecoando desde o nada (o barulho surge minutos antes de poder escrutinar-se a máquina que o provoca) e o silêncio daria à cena dimensão mais profética.
Las Cuevas poderia ser uma aldeia, mas não passa de meia-dúzia de casas de comércio, algumas arruinadas por tempestades passadas, onde se vendem chávenas de chocolate quente para combater o frio. Última paragem da estrada que sobe as montanhas desde o vale de Mendoza, a 761 metros de altitude, onde se situa a capital da homónima província. Fundada em 1561 e assim chamada, diga-se, por sorte do então governador espanhol do Chile, García Hurtado de Mendoza.
A linha de caminho de ferro chega até aqui; os comboios, não. A via jaz abandonada. Incapaz de cumprir tarefa: ligar os dois países. Obra amaldiçoada. Contam: túneis solidificados num dia e estranhamente derrubados durante a noite; homens mortos sem explicação ou com alguma mas pouco credível; dores de cabeça impossíveis de solucionar. Isso, ou a mesma maleita que condenou o comboio como meio de transporte em toda a Argentina: a lógica neoliberal. Carlos Menem, Presidente da Argentina durante os anos 90, encarregou-se de privatizar todas as linhas ao redor de Buenos Aires; para as outras, sob o argumento da falta de rentabilidade, estava guardado o destino da oxidação.
Sem comboios, a via serve agora de estranha atracção desde a janela dos automóveis. Fascinante obra de engenharia bordando a cordilheira e o Rio Mendoza (depois de Punta de Vacas, à entrada do Parque Nacional do Aconcágua, passa a chamar-se Las Cuevas). Primeiro do lado direito, depois do esquerdo, voltando à direita para terminar à esquerda: apenas uma vez cortando o alcatrão da estrada nº7, principal ligação terrestre entre dois países de três mil quilómetros de fronteira comum e imensos conflitos ao longo da história.
Múltiplos túneis, sucessão imensa de postes de electricidade, anos de trabalho desperdiçados. Nem sequer a locomotiva, antes usada para transportar turistas, puxa agora qualquer vagão. A via, ferrugenta, segue aparentemente intacta em todo o seu trajecto. Somente os refúgios de alta montanha, onde se resguardavam os comboios em altura de tempestade, se encontram meio destruídos.
Pelo caminho, a paleta de cores abre-se num leque variado de castanhos e amarelos. Os níveis de precipitação são baixíssimos, principalmente no Inverno. No sopé, o clima é temperado e seco; na cordilheira, árido e frio. Encarregando-se o degelo do Verão de fornecer a água que não cai do céu de Mendoza. Imigrantes espanhóis e argentinos fizeram da região a principal produtora vitivinícola da Argentina. Para fazer jus ao mote da província: terra de sol e de vinho.
O Aconcágua, imponente nos seus 6952 metros de altura – montanha mais alta do Continente, “tecto das Américas” –, ergue-se como farol destas paragens. Uma das duas possíveis origens do nome vem da palavra composta em quechua: “Ackon-cahuac” (“sentinela de pedra”). Outra possibilidade poderá ser a expressão mapuche “Acon-hue”, traduzida como “aquele que vem do outro lado”. Destino favorito de muitos alpinistas de várias latitudes, apesar de opiniões avalizadas considerarem o vulcão Tupungato (segunda elevação mais alta da cordilheira com 6650 metros) como tecnicamente mais difícil de escalar, o Aconcágua foi “conquistado” pela primeira vez pelo italo-suiço Mathias Zurbriggen em 1897.
Mais recentemente, rezava o ano de 1985, membros do Club Andinista de Mendoza descobriram a 5300 metros de altitude uma múmia Inca em perfeito estado de conservação. Prova retumbante de que a montanha serviu de santuário fúnebre na época pré-colombina. E, já no ano 2000, uma expedição militar descobriu a mais de cinco mil metros, os restos de um avião Lancaster desaparecido em 1947 e com os corpos dos seus ocupantes ainda conservados pelo gelo.
A presença do império ameríndio faz-se sentir também mais abaixo, onde a Puente del Inca se encarrega de prolongar o mistério que as montanhas brancas garantem. Uma ponte em pedra natural ao lado de uma fonte de águas sulfurosas. O líquido quente brotando da terra só precisa de 48 horas para transformar em pedra qualquer objecto encontrado pelo caminho. Nas barracas de recordações vendem-se sapatos velhos, garrafas e latas usadas transformados em esculturas pós-modernas por acção da água. O amarelo deixado por esse estranho rio que altera a paisagem, de tão intenso, ganha o jogo das comparações com a neve brilhando ao Sol. Nem os girassóis de Van Gogh possuem cor tão visceral.

Thursday, February 09, 2006

Um toque de finados pelo telegrama

Passou despercebida a notícia neste mundo de muitas, demasiadas notícias e pouca atenção. Acabaram oficialmente os telegramas. A Western Union, última das empresas que ainda mantinha o serviço em funcionamento nos Estados Unidos, decidiu colocar um ponto final no mesmo a 27 de Janeiro. E o anúncio foi feito através de um lacónico e-mail.
Diga-se de passagem, poucos de nós saberíamos dessa possibilidade de enviar telegramas ainda existir. Pelo menos, eu desconhecia (se calhar, trata-se apenas de ignorância minha).
Nunca enviei nenhum na minha vida. Tendo em atenção o facto de ter nascido em 1970, o mais estranho seria tê-lo feito! Nem me consta, pelas histórias familiares, que o meu pai tivesse recorrido a esses serviços para fazer saber à família em Portugal do nascimento do seu primogénito (e único filho) na Alemanha: “Rapaz nasceu bem 3 quilos 650”.
Obriga a nostalgia, porta aberta sem controlo nas águas furtadas da nossa mente, sentirmos, porém, certa tristeza, mesmo ínfima, quando vemos desaparecer algo que fazia parte do nosso mundo.
É essa nostalgia que move os coleccionadores, alguns historiadores e a maior parte de nós, seres humanos, quando voltamos pelos caminhos percorridos para tentar recuperar auras passadas.
A nostalgia pelo tempo esgotado vai aumentando à medida que envelhecemos, em contraste com a diminuição da euforia em relação ao futuro. É natural, nada de transcendente. Mais novos, estamos abertos a tudo e tudo queremos saber, mais idosos, mais conscientes, aprendemos a relativizar as coisas e a valorizar o adquirido.
Para quem tenha percebido neste texto a intenção bafienta de garantir em voz alta um “no meu tempo é que era bom”, saiba duas coisas: primeiro, ainda não tenho idade para isso e espero nunca vir a ter; segundo, o passado nunca poderá ser bom porque morreu – a memória pode consolar-nos, compungir-nos, soltar em nós bons ou maus pensamentos, ajudar-nos a compreender, viver para ela é morrer antes de tempo.
Esclarecido o possível mal entendido, adiante. Serve esta deambulação para falar do que estas crónicas pretendem sempre falar: de outros mundos. Tangencial, paralela, geográfica ou interiormente existentes em relação ao que nos tocou viver. Tal como o mundo do passado, para onde são enviadas as coisas condenadas pelo futuro e imprestáveis no presente.
O telegrama estava decididamente condenado pelo futuro. Em tempo de mensagens de telemóvel, correios electrónicos e telefonemas mais baratos, onde já as missivas em papel vão escasseando, o telegrama cumpria papel incongruente se é que algum papel representava todavia. Estava aí sem ser notado. Já tinha morrido, mas só agora a Western Union se lembrou de enviar um correio electrónico a avisar. As ironias do progresso.
Ao telegrama coube protagonismo, depois papel secundário, finalmente o esquecimento. Como as estrelas do cinema mudo que o sonoro foi substituindo, lembradas a posteriori apenas por alturas do obituário. “O telegrama morreu. Há muito dele se não ouvia falar. Foi-se sem palavras próprias, apenas notícia alheia.”
No entanto, se o telegrama como o conhecemos morreu, há quem tente ainda modernizar o conceito, cobrar à página em vez de à palavra, aceitar desenhos, logótipos, acertar hora de entrega ou garanti-la nas duas horas posteriores ao envio.
Os Correios do Brasil criaram o Novo Telegrama e publicitam-no desta forma na Internet: “Além de mais bonito, ele é também mais moderno, funcional e cheio de novidades. O preço passou a ser por página enviada e não mais por palavras. Outra novidade é que as palavras vêm acentuadas e o texto pontuado!”
Vivemos tempos de modernidade retro, da cultura feita do baralhar e voltar a dar conceitos antigos; da arte ao comércio, o passado é moderno. Do sabão branco ao Volkswagen Carocha, passando pelas calças à boca-de-sino.
E, como em todos os casos, o Novo Telegrama dos Correios do Brasil não é o telegrama, tão-somente coisa moderna usando termo conhecido para se designar e publicitar.
Tal como sabemos que o detergente da roupa com sabão não é o sabão, o Novo Telegrama tem pouco de telegrama e muito de novo.
Com o telegrama desaparece a ideia de um certo mundo. Um mundo dos românticos aventureiros e exploradores. Um mundo de mundos desconhecidos, de Richard Burtons, de Lawrences da Arábia, de Amundsens, de Gagos Coutinhos e Sacaduras Cabral. Um mundo que se desvendava à custa de temerários – dos que sobreviviam e dos que morriam.
Há menos de 100 anos o homem chegava pela primeira vez ao Pólo Norte, há pouco mais de 50 conquistava o cume do Evereste e há menos de 40 pisava pela primeira vez a Lua. Uma evolução vertiginosa testemunhada pelo telegrama.
Veio o telefone, melhoraram os correios, progrediram as telecomunicações, mas foi o computador e a Internet a dar a machadada final no telegrama. A instantaneidade da comunicação, o acesso universal, tornaram obsoleto o meio inventado por Samuel Morse.
A primeira mensagem enviada por Morse, a 24 de Maio de 1844, de Baltimore para Washington, foi uma citação da Bíblia: “What hath God wrought?” (O que é que Deus criou?).
O serviço da Western Union, ao anunciar o fim dos telegramas, foi mais lacónico: “Efectivo a 27 de Janeiro de 2006, a Western Union vai descontinuar todos os serviços de Telegramas e Mensagens Comerciais. Lamentamos qualquer inconveniente que lhe possa causar e agradecemos o seu leal apoio”.
Entre uma e outra passaram quase 162 anos e muitos mais mundos. Dobram os sinos, o telegrama já é passado.

Thursday, February 02, 2006

Pela cruz de Cristo

O princípio da noite estava carregado de nebulosidade e frustração. Dia para esquecer. Povoada por um grosso manto de nevoeiro e uma camada substancial de humidade, Montevideu apenas enregelara os ossos. Da cidade encantadora à entrada do Rio de La Plata, poucas pistas. Nada capaz de vencer a tristeza molhada que, subindo das águas barrentas, acinzentava os olhares até reduzi-los à mudez. A caminho do barco de regresso a Buenos Aires, pensava no afortunado que era por ter escolhido o outro lado para fixar residência. Nem mesmo no pior dos seus dias, a capital argentina transmitia sensação similar.
Mas nada acaba enquanto não exercite a gorda senhora os seus dotes de canto e até nos burocráticos e mecânicos gestos de um controlo de fronteira se pode resgatar uma cidade. Montevideo ressuscitou por premissa desse oficial de alfândega. Tendo entre mãos o passaporte português, inundou-se-lhe a cara de um sorriso para me dizer: “Soy hincha del Belenenses. El de la Cruz de Cristo.” (Sou adepto do Belenenses. O da Cruz de Cristo.)
Por aí ficou a nossa cumplicidade. A fronteira não é bom lugar para conversas, principalmente quando uma fila de gente vigia, documentos em riste, qualquer minuto perdido em atitudes pouco consentâneas com a solenidade do lugar. Nesse aspecto tem muito de Igreja: espera-se não ter pecados suficientemente importantes que nos obriguem a quedar espiando culpas. Por aí ficou a nossa cumplicidade, mas é como essa simples frase tivesse estabelecido uma relação especial e inquebrantável entre mim, esse empregado de alfândega, Portugal e Montevideu.
Lembrando Hitchcock, aquele McGuffin (algo que não pertence directamente à narrativa, embora ajude a marcar o ambiente) evitou o desmoronamento em mim da imagem literária da cidade. Encontrar um adepto do Belenenses tão longe do Restelo foi como a chave para reordenar a experiência própria com a experiência dos outros. Sem tentar substituir o rio de La Plata pelo Tejo, Montevideu estendia-me o convite para regressar.
No passado, pela Cruz de Cristo, outros portugueses por aqui andaram. Ou, pelo menos, assumindo a cruzada missionária como marketing e outras actividades por subsistência. A 170 quilómetros da capital, Colónia do Sacramento teve em Manuel Lobo o seu fundador. Corria o ano de 1680 e, desafiando o poder espanhol no Rio de La Plata, os portugueses instalavam um entreposto de contrabando nas barbas do inimigo histórico: os produtos britânicos chegavam assim a Buenos Aires rompendo o bloqueio comercial monopolista imposto pela corte de Madrid.
Os espanhóis responderam com Montevideu, em 1726. Contra portugueses, britânicos, franceses e até dinamarqueses, Filipe V erigia a praça-forte para recuperar o esplendor passado do império, depois da decadência político-militar e económica do século XVII e a guerra pela sucessão ao trono que o ocupou durante o primeiro decénio setecentista.
Produto típico da emigração do século XIX, princípios do século XX, o Uruguai tornou-se conclave europeu no hemisfério Sul. Feito à imagem da herança genética das vagas migratórias do Velho Continente. Os índios charrua, ancestrais habitantes da região, nunca foram numerosos e hoje descendentes desses antigos autóctones existem poucos, a maioria junto à fronteira com o Brasil.
Se em Montevideu o mais antigo edifício ainda existente tem assinatura do arquitecto português José de Sá Faria (trata-se da igreja matriz erigida durante 15 anos e inaugurada em 1799); se a avenida marginal que percorre os bairros da classe média alta nos arredores da capital aparece, a determinada altura, baptizada como Portugal; encontrar um adepto de um clube português por aqui não deve ser único.
Noutros lugares, surgem conhecedores de Benfica, Porto, Sporting, Eusébio ou de alguns dos jogadores lusos de hoje, que mostram maravilhas visíveis em campeonatos televisionados universalmente. Fanáticos de futebol são mesmo capazes de citar um par de equipas mais do campeonato nacional. Agora, exclamar de chofre, perante a palavra Portugal, “sou adepto do Belenenses” e, ainda por cima, acrescentar, “o da Cruz de Cristo”, implica mais do que a simples percepção de nome em página desportiva de jornal.
A época de Matateu passou há muito. O campeonato nacional de 1945 mantém-se como único na galeria de troféus do clube e os altos e baixos dos últimos anos foram afastando o histórico de Lisboa dos tempos de glória e, logicamente, dos encontros internacionais. Sem qualquer menosprezo, encontrar no estrangeiro um adepto da equipa do Restelo resulta, no mínimo, difícil. Quanto mais se nada tem de português.
A confissão daquele funcionário no porto internacional de Montevideu faz renascer laços históricos. Aponta para além do futebol; para além da experiência particular. Mostrando um presente herdeiro de cruzamentos, misturas, migrações. Feito da história de muitas histórias que o acaso se encarregou de cruzar. Quem poderá, então, jurar da pureza sanguínea, se, como os rios, o sangue que nos corre nas veias veio de muitos afluentes?