Monday, March 20, 2006

De Ushuaia a Los Angeles

Em 1984, uma vintena de músicos, técnicos e uma fotógrafa – com câmaras de vídeo, um autocarro, um estúdio móvel de som e um gerador para levar luz até onde não a havia – empreenderam uma das viagens mais importantes para a história da música argentina. A maior parte dos intervenientes vinha do rock e eram liderados por dois homens, León Gieco, rocker com preocupações sociais, e Gustavo Santaolalla, compositor, músico, produtor e apaixonado pelo charango (uma espécie de cavaquinho andino).
O mesmo Santaolalla, diga-se, que se transformaria depois no mais importante produtor musical do rock latino-americano, que se instalou em Los Angeles, onde montou o seu muito solicitado estúdio (La Casa) e onde acabou por se meter nas músicas para filmes com “Amores Perros” (“Love’s a Bitch”). Compôs outras (“21 Grams”, “Motorcycle Diaries”) e este ano ganhou um Óscar com a banda sonora de “Brokeback Mountain”.
A viagem de há mais de 20 anos foi ao mesmo tempo geográfica e etno-musiológica e que a tenha feito gente do rock mostra que por trás do projecto havia, além do interesse intelectual, muita paixão e desejo de registar a riqueza cultural de um país que acabava de emergir de uma ditadura brutal que deixara um rasto de 30 mil desaparecidos.
A jornada a empreender não foi até ao fim do mundo, mas teve o condão de mostrar muitos mundos. Do extremo mais austral do país, no clima antárctico de Ushuaia, até às securas de La Quiaca, terra pobre, dura e quente junto à fronteira com a Bolívia, foram quase 4500 quilómetros de aventura que resultaram, na altura, na edição de apenas um disco por problemas com o selo discográfico.
O projecto era demasiado adiantado para o tempo, Gieco e Santaolalla recuperavam as raízes argentinas quando o país se abria ao exterior para beber do rock anglo-saxónico e a lógica do mercado era contrária à edição de discos muito extensos.
“De Ushuaia a La Quiaca” seria recuperado 15 anos depois pelo diário “Página/12” que se lançou na edição do material em quatro CD com informação e fotografias, demonstrando que as gravações ao invés de empoadas pelo tempo, ganhavam brilho de tesouro e antecipavam em muito tempo o gosto que o mercado viria a ter anos mais tarde pela world music.
Gravando com a chilena Isabel Parra nas margens do rio Pipo na paisagem nevada da Terra do Fogo (Sul) ou com 1500 crianças e 40 professoras no anfiteatro El Cadillal em Tucumán (Norte), “De Ushuaia a La Quiaca” é uma celebração da riqueza musical de um país que é muito mais do que o cliché do tango.
As Zambas, chacareras, vidalas, chamames, corridos, cuartetos, bagualas, cuecas, tonadas, o som das quenas (flautas andinas), somadas ao tango e às milongas do rio de La Plata mostram que a geografia sonora argentina é tão díspar como a física, reflectindo a influência do clima, a importância da história e do povoamento do país.
No noroeste seco e desértico, terra dura, mantém-se a predominância indígena; no ambiente quase selvático do nordeste, onde o clima é húmido e a terra é rica, cruzam-se as influências dos imigrantes agricultores da Europa (ucranianos, polacos, alemães, etc.); na província de Córdoba, a cultura, a forma de falar e a música parecem vir de uma costela mais espanhola; na Patagónia, com a sua paisagem de nada a perder de vista, pouco populosa e fria, a relação com o Chile é mais próxima; Buenos Aires é um mundo aparte, mais demarcado pela influência italiana e por ser uma cidade-porto, berço de uma cultura que tem língua própria (o lunfardo) e cultura que se estende até ao Uruguai e é denominada como rio-platense.
E por aí fora, mostrando que o mundo conhecido é feito de outras camadas de mundos por trás e muitas vezes as identificações simples não são mais do que sínteses simplistas que pretendem ilustrar e apenas obscurecem.
León Gieco foi-se estabelecendo ao longo destes anos como um dos músicos mais activistas da Argentina, participando em inúmeros projectos na defesa dos direitos humanos e continuando a gravar discos para gáudio de uma legião enorme de fãs que extravasam as fronteiras argentinas e se estendem pelo continente americano.
Santaolalla zarpou para Los Angeles em busca de melhores condições para exercer o seu trabalho, assinando alguns dos grandes discos do rock latino-americano dos últimos anos (dos mexicanos Café Tacuba e Molotov, aos argentinos Arbol e Bersuit Vergarabat, passando pelos colombianos Aterciopelados, para falar apenas de alguns). A seu lado continua a ter Anibal Kerpel, músico e engenheiro de som que também participou na aventura “De Ushuaia a La Quiaca”.
Tanto Gieco como Santaolalla procuraram manter ao longo de todos estes anos a ligação com a música popular como base essencial para construir um rock autêntico que não seja cópia do que se vai produzindo nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. Os argentinos não tiveram a revolução do tropicalismo como os brasileiros, mas “De Ushuaia a La Quiaca” foi uma espécie de pequena revolta contra o estabelecido.
Enquanto escrevo estou a ouvir “Ronroco”, o disco que Santaolalla editou em nome próprio na Nonesuch Records em 1998 – na Amazon pode ser adquirido facilmente se tal pretender. Completamente instrumental, com o charango (o ronroco é um charango mais grave) tocado pelo músico/compositor/produtor a dominar as 12 faixas do CD e o acompanhamento do sempre presente Anibal Kerpel – Santaolalla agradeceu-lhe no discurso de aceitação do Oscar de “Brokeback Mountain” –, “Ronroco” é uma viagem nostálgico-intemporal por um mundo que parece real e irreal ao mesmo tempo, vivo e parado no tempo. Um dos temas chama-se precisamente “De Ushuaia a La Quiaca”.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home