Tuesday, January 24, 2006

A gota feita da soma de todas as gotas

Às vezes, as histórias não vêm do fim deste mundo, mas de outros. Muitas vezes chegam também do princípio do mundo com passaportes sonoros. Não importa que as não compreendamos totalmente ou nem sequer pela metade. A razão é capaz de nos toldar os sentidos e deixar-nos levar pela incompreensão pode ser bom remédio.
Vem esta crónica a propósito de um disco. Um disco com três anos (“Point”) feito por um japonês, Keigo Oyamada, com pseudónimo (Cornelius) roubado a um dos símios do “Planeta dos Macacos” que antes de ser um filme de ficção-científica foi (e é) um livro do francês Pierre Boulle.
O mais provável é que o leitor nunca venha a ouvir este disco, o que não importa nada para o caso. Importa a ideia subjacente que inspirou este texto: a de que este mundo fervilha de histórias, geográficas, sonoras, visuais, reais ou imaginárias, histórias de pessoas, dos mundos onde vivem, dos mundos que criam, e de como a vida por si só vale a aventura de ser vivida, mesmo sem recompensas etéreas no final.
Mas, antes, as coordenadas, para quem lhe interesse procurar o disco de Cornelius, este “Point” de 2002 é o sucedâneo do primeiro que chegou aos escaparates ocidentais em 1998 (através da editora britânica Matador) e que se chamava “Fantasma”, obra que, na altura, surpreendeu os dedicados especialistas mundiais da pop-rock porque era daquelas que se recusava a ser compartimentada. Oyamada é um produto típico da chamada “bublegum pop” japonesa dos anos 90, mas isso já é ir muito ao pormenor.
Nos quatro anos de separação entre “Fantasma” e “Points”, Cornelius tornou-se um homem musicalmente importante, importância que se tem mantido desde aí. Correu mundo, fez misturas para Beck, Blur, Sting, k.d. Lang e ganhou fama de ser um dos mais prováveis visionários do universo pop-rock. Mesmo que a sua fama se mantenha restrita ao nível dos habituais consumidores de música mais interessados em descobrir outras coisas para além dos discos mais vendidos.
Fascinado pela parafernália tecnológica, como japonês que se preze, Cornelius usa todos os instrumentos da ciência ao seu dispor para construir a partir de si próprio e da sua música um universo estranho que incorpora coordenadas de todos os outros mundos ao seu alcance e as reforma, transforma, deforma, disforma até lhe dar o aspecto que considera adequado à sua visão dos tempos.
«Point» é uma justaposição de influências – todas as possíveis e imaginárias, tal como corresponde a um espírito eclético como o de Oyamada – capaz de apontar direcções e desviar-se logo a seguir, para retomar a rota num ponto qualquer mais avançado. Chega a ter canções que até parecem canções, mas ouvidas mais de perto rapidamente se distinguem por não serem bem como as tínhamos imaginado às primeiras notas. Porque tudo passa por habituar o ouvido.
Atmosférico e escultural, feito de múltiplas camadas de oxigénio respiradas em vários quadrantes, «Point» tem pelo menos uma das características que marca a pop japonesa que normalmente chega aos circuitos ocidentais, a da enorme influência brasileira, nomeadamente da bossa nova, capaz de lhe conferir esse lado cool que em nenhuma altura «Point» chega a perder.
Cornelius imaginou-o como centro de uma obra que faz uso do design, da moda, do vídeo, das luzes tridimensionais e da enorme parafernália kitsch que a imaginação pode conceber ou já concebeu. São armas a que Cornelius foi recorrendo durante a sua longa tournée de promoção de «Fantasmas», onde também acrescentava astronautas karatecas e disfarces de macaco, de acordo com o universo de ficção científica de contornos um tanto naifs que serve de ponto de partida ao projecto Cornelius.
No futuro esteticamente rétro de Cornelius, delineado a partir dessa ficção-científica de «Planeta dos Macacos» que era em si mesmo um mundo kitsch – ou, então, foram os anos a emprestar-lhe tal aura –, «Point» é só mais uma cidade, construída como se fosse um desses exemplos de arquitectura utópica que os desenhadores de manga (banda desenhada japonesa) souberam muito bem aproveitar para as suas obras, só que aqui em versão musical.
A música de Cornelius é e sempre será de laboratório e não de rua, obrigando a uma necessária auscultação atenta e prolongada para compreender o máximo das coordenadas. Cornelius é um manipulador, de máquinas, de ideias, de conceitos, de influências, de ambientes, uma versão humana do velho desenho animado do Professor Xavier, transmitido pela RTP nos anos 70 e 80, que de uma multitude de tubos, torneiras, pipetas e provetas sempre sintetizava a essência das coisas numa só gota, resultado básico de tudo aquilo que para dentro da sua máquina enfiava.
Coisa importante essa gota, porque surge da síntese de uma imensidade de coisas, porque se mostra como essência de um espírito que não rejeita as influências vindas de donde seja. Nesse aspecto, o outro mundo de Cornelius é um mundo feito de camadas de mundos diferentes, de camadas finas assentes umas em cima das outras e que trazem o milagre da superação: um bolo mil-folhas criativo, moldado pelas mãos sábias de um pasteleiro com ouvidos sem fronteiras.
Este disco é apenas uma gota, uma gota também no oceano deste planeta de seis mil milhões de almas à procura de sobreviver num mundo cada vez mais escasso de recursos. Uma gota que gosta de ser a soma de milhões de outras gotas. Assim somos nós, a soma de milhões de outros que ficaram para trás, como um mil-folhas moldado pelo pasteleiro da história, prontos a ser mais uma folha do que virá. A vida é soma, nunca subtracção. O disco de Cornelius fala disso, ou então fui eu que sonhei.

(crónica publicada a 19 de Janeiro)

Saturday, January 07, 2006

Ideias do sul

A caminho do fim do mundo leio um texto de Björk sobre outro fim do mundo. Razão para questionar o que é verdadeiramente esse lugar íntimo onde a civilização conhecida deixa espaço à natureza e o homem se queda a sós consigo próprio. 360 graus de céu aberto e um lago e um fio de vapor libertado por uma nascente de água quente, como escreve a cantora islandesa? Ou este risco que atravessa uma terra tão plana que dá para duvidar da redondez do planeta? E a areia negra das praias abrindo caminho para a transformação em azul turquesa, quando a planície terrena encontra a planura do mar? Na paisagem de arbustos rasteiros, os únicos capazes de suportar o vento permanente, desenha-se a estrada como risco feito por mãe esmerada na cabeça de seu rebento a caminho da missa. Bem-vindos à Patagónia.
Uma aterragem perfeita no aeroporto de Trelew. Da cidade, nem rasto. Invenção de geógrafos para menos desolação da terra? Do guia saco a informação: Trelew, conveniente paragem para quem pretenda visitar as vilas galesas de Gaiman e Dolavon (e a reserva de pinguins). As duas povoações recriam arquitecturas e hábitos do outro lado do Atlântico. Forma de evitar saudade mais dolorosa. Lady Di aproveitou para tomar o chá das cinco em Gaiman, quando por aqui andou de visita, numa casa que de Gales parecia ter chegado intacta, apenas enganada na geografia.
Tre é cidade em galês e Lew abreviatura do também galês Lewis Jones, promotor da expansão do caminho de ferro na região. Caminho de ferro que o governo de Carlos Menem se encarregou de destruir como meio de transporte, acabando com os subsídios à exploração de linhas. Subsídios que o executivo não deixou, no entanto, de garantir às empresas privadas que exploram os ramais de Buenos Aires e arredores. Permitindo aos empresários gerir o negócio como companhias estatais: com tantas benesses e lucros em troca de quase nada. Os bilhetes continuam baratos, apenas porque uma viagem de comboio ainda é o melhor garante para tirar as dúvidas: isto não é a Europa (como a capital argentina pretende fazer crer ao distraído transeunte).
Comboios dos subúrbios de Buenos Aires. Cada banco parece kit de tortura ambulante. Torturas democráticas de somenos importância quando se lembram outras, a dos apoderados de Videla, Galtieri, Massera e companhia entretendo-se a dilacerar física e psicologicamente “subversivos” nessa “grande” e “justa guerra” dos anos 70 – a da ditadura militar que dominou o país de 1976 a 1983 e se lançou esfaimada a matar tudo aquilo capaz de cheirar a comunista. Guerra capaz de incluir crianças, mulheres, homens, cães, gatos, prata, ouro, jóias, dinheiro e tudo o que pudesse atentar contra a boa vida dos cidadãos argentinos. Tudo “desapareceu”: homens e mulheres voaram pelos céus até ao Atlântico Sul e não regressaram (continuam “desaparecidos”); as crianças, poupadas à educação “diabólica” da cartilha comunista, cresceram ignorantes na casa dos assassinos; ouro, prata, jóias e dinheiro passaram, logicamente, para a mão dos valorosos defensores da pátria, guardados em contas nos silenciosos bancos suiços.
Heróis, grandes heróis, depois rebelados contra os imperialistas britânicos das Malvinas numa luta que logicamente perderam, que logicamente deixou traumas e que, também logicamente, demonstrou como às vezes as medalhas desses pobres de uniforme lhes deixa a ilusão de estar perto de Deus. Heróis como o capitão Astiz, braço eficiente de ordens superiores. Excelso guerreiro na luta antisubversiva, depois prisioneiro nas Malvinas, onde se rendeu sem disparar um único tiro. Provavelmente, por não querer ter na consciência a morte de pobres soldados estrangeiros. Matar, só mesmo argentinos – se desarmados, melhor!
E os pensamentos regressam à Patagónia vista do avião. Ao chegar a Rio Gallegos, última cidade antes do Estreito de Magalhães – divisão natural entre o continente e a Ilha Grande da Terra do Fogo –, o enquadramento surpreende os mais distraídos. A terra segue sempre igual até ver o mar, para acabar abruptamente, como morto na praia. Aborrecida com a monotonia da terra amarelada, protesta assim, qual parágrafo deixado sem conclusão.
A Patagónia não existe. Foi inventada por europeus. Descrita pelos inúmeros viajantes perdidos num espaço sem montanhas, nem árvores para servir de coordenadas. Como Bruce Chatwin que transformou um livro em paisagem e contribuiu para aumentar o fluxo de turistas que todos os anos deambulam pela região à procura de novas experiências – à boa moda da Índia, com menos cheiro a incenso. Espaço de andarilhos e silêncio. “Assim é a nossa raça: recebemos o nome segundo a terra que nos recebe” afirmavam os índios Yaganes, hoje extintos como quase toda a população indígena da Argentina.Muito menos existe para os políticos da capital. O Sul vive apesar de Buenos Aires. O Sul da do palácio presidencial da Casa Rosada tem mais a ver com as ilhas Malvinas e essa insistência obsessiva de todos os argentinos por recuperar o território usurpado pelos ingleses. Um arquipélago que à Argentina, país independente, pertenceu apenas uma dúzia de anos. Os kelpers (habitantes das Falklands, na terminologia britânica) preferem ser cidadãos de segunda de Sua Majestade que cidadãos argentinos de primeira. A história ensinou-lhes ser pouco apreciada, na região, a palavra estabilidade e o discurso ambíguo causa-lhes temor. Os kelpers nada têm de argentinos, nem sequer de britânicos. São apenas duas mil almas rudes e fechadas criando ovelhas num par de ilhas no meio do inóspito clima do Atlântico Sul. Em dias de bom tempo (poucos), das Malvinas vê-se a Patagónia. Mas, nem nos dias mais lindos, se vislumbram as costa da Velha Albion.

(crónica publicada a 05 de Janeiro)